Olavo de Carvalho

Época, 31 de Março de 2001

Há um método infalível de tirar conclusões erradas – o método brasileiro de raciocinar

Se você quer estragar definitivamente um cérebro, acostume-o desde pequeno a tomar os sentidos das palavras, estampados nos dicionários, como se fossem traduções diretas de coisas e fatos. Em seguida, quando ele montar um raciocínio com essas palavras, faça-o acreditar piamente que a conclusão se aplica aos fatos e a coisas correspondentes.

Esse é o método infalível de ir parar longe da realidade. Após algumas décadas de experiência na leitura de jornais e livros brasileiros, posso assegurar que ele é praticamente o único método admitido nos debates públicos neste país.

Querem um exemplo? A palavra “iluminismo” designa idéias de liberdade e razão, opostas ao dogmatismo, à fé cega e às tiranias. “Inquisição”, por sua vez, quer dizer um tribunal que mandava os heréticos para a fogueira. Logo – segundo o método acima referido –, se estivermos falando de tortura, podemos concluir razoavelmente que a Inquisição fez uso regular desse expediente e que a difusão do Iluminismo extirpou essa prática hedionda do rol das atividades humanas decentes.

Essa crença é hoje em dia um “topos”, um lugar-comum, não apenas tido por verdade auto-evidente, mas usado como premissa capaz de transmitir sua veracidade a quaisquer conclusões que se tirem dele.

No entanto, se em vez de se contentar com palavras você decidir investigar os fatos em detalhe, indo além do que se pode encontrar em livros de divulgação escritos pelo método brasileiro de raciocinar, descobrirá que os inquisidores foram as primeiras autoridades a enxergar na tortura algo de imoral e, sem poder aboli-la por completo, as primeiras a limitar severamente a sua prática, vetando a efusão de sangue e proibindo que o mesmo prisioneiro fosse torturado mais de uma vez. Isso foi um dos passos mais decisivos na evolução dos direitos humanos.

Os iluministas, por seu lado, consagraram a noção do Estado – em vez da religião ou da cultura – como autoridade moral suprema, portanto do governante como “guia dos povos”. Com isso, prepararam o terreno não só para o advento do Terror revolucionário na França, mas para a emergência dos totalitarismos modernos que reinstauraram a prática ilimitada da tortura. Essa realidade histórica é totalmente escamoteada quando, com a maior inocência, o sujeito raciocina com base no valor nominal dos termos.

Igualmente inepto – só para dar outro exemplo – é o raciocínio que atenua as culpas de terroristas sob a alegação de que são minorias em luta clandestina contra um governo tirânico, ao mesmo tempo que condena com veemência o “terrorismo de Estado”. Nominalmente, as duas coisas são inversas, mas de fato o terrorismo de Estado só veio a existir por obra de grupos clandestinos que, subindo ao poder, conservaram, agora como técnicas de governo, suas antigas práticas de luta – havendo portanto entre o terrorismo clandestino e o estatal uma relação análoga à de ovo e galinha, entre os quais não há oposição lógica mas apenas diferenças de fases na evolução temporal de uma só e mesma criatura.

O terrorista avulso de hoje é o terrorista estatal de amanhã, como o foram Lênin e Hitler, Mao e Fidel. E há sempre um intervalo misto, como no caso das Farc, que fazem terrorismo avulso nas regiões submetidas ao governo central, terrorismo estatal nas áreas sob seu próprio domínio.

Tomar as palavras como coisas é introduzir, em debates sérios, um elemento de magia hipnótica. Feito com inocência, é prova de burrice e incultura. Feito de propósito, é esplêndida vigarice.

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