Diógenes Coimbra

14 de julho de 2001

“O Sancta simplicitas! Em que mundo mais estranhamente simplificado e falsificado vive a humanidade! É infinito o assombro diante de tal prodígio.”

 NIETZSCHE

ALÉM DO BEM E DO MAL

     A busca pelas essências, norteada por métodos que se exigiam rigorosos, constituiu, desde o dealbar da filosofia ocidental, o cerne de todo pensamento racional.  “Uma lei constitutiva da mente humana, todavia, parece conceder ao erro  — lembra o eminente filósofo Olavo de Carvalho — o privilégio  de poder ser mais breve do que a sua retificação”. [1]

      Desse modo, o professor Roberto Lyra Filho, em seu opúsculo “O que é Direito”, consegue lançar o leitor incauto, na exígua extensão de menos de uma centena de pequenas páginas,  ora num indestrinçável emaranhado de conceitos lassos, ora num paul de sofismas sorrateiros. Fazendo-se valer dos mais avelhantados lugares-comuns do marxismo, o autor procura, nesse panfleto, menos conceituar de modo preciso o fenômeno jurídico, que reputa tarefa de fácil labor, do que desanuviar da realidade as brumas que a encobrem.

      A tese lyriana, com efeito, deixa-se cingir por reduzidas e retumbantes linhas, a saber: uma classe dominadora serve-se do Direito para manter a dominação sobre outra classe, a dos espoliados — em que desce a porrada (sic) toda vez que as leis não resolvem o caso. Esse Direito espúrio origina-se e assenta-se em leis naturais, de cunho metafísico — e, se metafísico, ideológico e falso —, a partir das quais, num estágio posterior de usurpação do poder, a burguesia irá formular leis positivas, que, contraditoriamente àquelas naturais, tenderiam a preservar o status quo da classe burguesa, a qual não dá a menor bola (sic) para os dominados. A tal classe espoliada, sem ter um estalão crítico (sic), vai tendo que engolir estes e outros sapos (sic), o que constitui, não há negar, grande sacanagem (sic), uma vez que os dominadores só os pegam com as calças arriadas (sic). Relevado o estilo simplório — afinal, de gustibus et coloribus disputandum non est —, eis a síntese do pensamento lyrista. Por fim, fechando a fenda aberta com agigantada pedra filosofal, conclui que  “o Direito não ‘é’; ele ‘vem a ser’”, afinal, de acordo com fina ontologia, “nada é, num sentido perfeito e acabado; que tudo é, sendo”.

      O leitor apressado pode querer ligar essas ralas alusões metafísicas àqueloutras do Estagirita, mas a conexão é impossível, o abismo, instranspulável. Mais provável é estarem assentes as bases da metafísica lyrica — da qual tenta a todo custo livrar-se, a fim de cumprir os ditames do catecismo marxista — no solo palúdico do chauísmo.  A origem não seria despropositada. A senhora Chauí, pessoa tão íntima do autor — di-lo, na dedicatória, sua colega, sua irmã, sua amiga — não poderia ter obtido tão veneranda admiração sem que igual influência não houvesse exercido sobre ele. Senão, veja-se a teoria ontológico-marilênica:

“O real não é constituído por coisas. Nossa experiência direta e imediata nos leva a imaginar que o real é constituído por coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto é, de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossas vivências.” [2]

      Não explica a autora de que método ou sortilégio valeu-se para alterar a composição íntima da matéria, objetivo tão almejado pelos alquimistas. Na terminologia do senhor Lyra, valendo-se de uma espécie de mágica besta (dir-se-ia melhor: dialética canhestra), D. Marilena fundiu, refundiu e confundiu as categorias de substância e de paixão [3] — claras para qualquer leitor iniciante do aristotelismo. Transforma, com isso, a constituição essencial do ser em meros acidentes seus, de molde que o pau-de-segurar-a-barraca-do-circo perde por encanto sua substância de pau, uma vez que o mero acidente de ser mastro de circo, de galeão espanhol ou trave de campo de futebol modifica sua substância de paulidade. Para empregar, mais uma vez, o estilo lyrico-chauíno: chutaram o pau-da-barraca.

      Não menos místico é o tour de force que faz eqüivaler, por um lado, causa final, inteligência contemplativa e classe dominante, e, de outro lado, causa eficiente, inteligência prática e classe dominada. Transpondo os limites da argumentação lógica, conclui com esmero:

“temos, portanto, uma teoria geral para a explicação da realidade e de suas transformações que, na verdade, é a transposição involuntária para o plano das idéias de relações sociais muito determinadas. Quando o teórico elabora sua teoria, evidentemente não pensa estar realizando essa transposição, mas julga estar produzindo idéias verdadeiras que nada devem à existência histórica e social do pensador.” [4]

      Não sendo possível atingir o grau de iluminação, aparentemente próprio dos adeptos deste método engenhoso, que permite chegar ex nihilo a conclusões e mesmo a teorias gerais tão abrangentes e revestidas de alto grau explicativo e probante, fique-se com as dúvidas, bem expressas, a propósito, por Olavo de Carvalho:

“Se um homem está pensando sobre fenômenos da natureza física, como se explica que o interesse de classe, tão alheio ao assunto de seus pensamentos, se imiscua neles e acabe por determinar o seu curso, de maneira até mais decisiva do que o objeto sobre o qual discorrem? Como será que, pensando por exemplo na embriologia dos gatos ou na lei de queda dos corpos, posso produzir um discurso que, no fim das contas, nada diz sobre gatas prenhes ou bolas que caem, mas apenas afirma o direito que minha classe social tem de viver no bem-bom à custa da exploração das outras classes? Como se dá, enfim, a “transposição inconsciente”? Que processos psíquicos, lingüísticos, neurológicos, determinam que todo teórico do que quer que seja nunca saiba precisamente do que está falando, mas sempre, imaginando falar de animais, de mares, de montanhas, de pedras ou de anjos, esteja sempre falando de outra coisa, sem ter disto a menor idéia? Por quais mecanismos causais se produziu esse monstruoso fenômeno do equívoco universal, do qual veio libertar-nos D. Marilena?”

      Frise-se que tais ponderações não são absolutamente despropositadas, porquanto nada mais legítimo do que o perguntar ao teórico das bases de seu sistema. Se o autor de “O que é Direito” não no diz, busque-se algures, porque a ninguém se pede aceitar  sem mais algaravias alheias.  Não diz o autor em que fonte foi limpar-se das impurezas do mundo burguês, de modo que retorna de tão imaculada fonte com olhos límpidos, capazes de vislumbrar por entre a baça neblina das ideologias a verdadeira realidade das coisas.

      Há de bom grado supor-se que o autor conheça os membros constituintes dos conjuntos dos dominadores e dos dominados, dado que os cita a mais não poder. Ao contrário do que se espera de um escritor intelectualmente honesto, não se fica a saber, ao fim e ao cabo, quem integra aqueles conjuntos. A saber não se fica, tampouco, em que categoria incluir o egrégio professor universitário que por sextuplicados lustros lecionou tantos e tão abastados jovens, sob o amparo generoso do erário, e, ainda post mortem, viu seu nome homenageado por pupilos uspianos em publicação universitária, de novo a expensas do dizgraziatto Estado liberal-burguês. Bem de se ver que os conceitos e categorias que vestem o discurso do Doutor Lyra correm mesmo à frouxa, deles não se extraindo nenhum conhecimento da realidade nem sequer do fenômeno jurídico.

      Doutor Lyra, ademais, pressupõe a dialética de Marx, com Aufhebung de ponta-cabeça incluída, como critério científico para alcançar conclusões apodícticas, mas não lembra que tal método, ou antes, artifício sofístico, nada tem de científico nem muito apresenta conclusões verdadeiras. A esse respeito, bem observa Eric Voeglin que

“Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialética da Ideia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar.”

      Seguindo, pois, as profecias de seu visionário guru, o Doutor Lyra emprega igualmente o mesmo estilo oblíquo, eivado de lugares-comuns, verdadeiros bondes do transporte intelectual, como diria Ortega y Gasset, valendo-se mais de maleabilidades metafóricas que de assertivas precisas, a fim de ocultar em imagens o que não ousa expor em conceitos. Destarte, ao em vez de considerar o marxismo, e o comunismo que dele deriva, como corrente ideológica sobre cujas bases se erigiram os movimentos mais sanguinários de que já se teve notícia na face da terra, prefere referir-se a tais movimentos como traição à causa, todas as vezes em que, como na Revolução Bolchevique de 1917, o poder se “deitou na cama (estatal) e dormiu sobre o colchão de instituições domesticadas, acordando assustado toda vez que algum socialista herege e contestador berrava que ali (ou na casa do vizinho) havia algo de errado”. O expediente usado é antigo, embora haja ainda quem dele se engane. Vejo meus colegas de curso sob o fetiche das dulcíssimas propostas marxistas. Nada menos estranhável, já que recém deixados o secundário, durante o qual foram exaustivamente catequizados pela cantilena dos livros marxistas. Agora, levados pelo encanto de mais elevados estudos, encontram guarida no discurso melífluo dos acólitos do Direito Alternativo. Escusado o trocadilho, cito Catão: Fistula dulce canit dum Lyra dulcisono carmine prodit aves (A flauta toca suavemente, enquanto o doce som do Lyra engana os pássaros — com a devida adequação).

      Com efeito, o que disse Voeglin de Marx, diga-se também de seu pupilo brasileiro:

Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii “o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem”. Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fôra dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é “pôr na cabeça”? É milagre fisiológico? Actividade mental? Acto cognitivo? Processo cósmico?”

      Finalmente, não há senão concluir que a obra do professor Lyra segue à risca os mandamentos de seu outro mestre, Antonio Gramsci. De fato, intelectual orgânico par excellence, o autor do panfleto “O que é Direito” mais procura convencer pelo expediente propagandístico, valendo-se daquele princípio da economia do erro acima aludido, que pelo confronto direto de argumentos, bem ao gosto grasmsciano que exige “que toda atividade cultural e científica se reduza à mera propaganda política, mais ou menos disfarçada”, bem recorda Olavo de Carvalho. Não engenhou obra de filosofia do Direito ou de sociologia jurídica, senão que buscou convencer ad baculum et populum da necessidade de se construir uma nova sociedade que venha a comportar a vaga idéia de direito apresentada. Contra as teses lyricas já advertia Ortega y Gasset: “No vazio social não há nem pode nascer direito. Este requer como substrato uma unidade de convivência humana, da mesma forma que os usos e costumes, dos quais o direito é o irmão mais novo, porém mais enérgico”. [5]

      Diga-se uma vez mais: “O que é Direito” não é obra de filosofia do Direito nem de qualquer outra matéria que se repute científica, senão objeto de propaganda político-ideológica, posto o aspeto formal que lhe emprestam o estarem as palavras organizadas e impressas em formato de livro, e encimadas por título que o apresenta com vestes de seriedade.

NOTAS


[1] A Nova Era e a Revoulução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994.

[2] O Que é Ideologia? (São Paulo, Brasiliense, 31a. ed., 1990).

[3] Tópicos, 103  b  20.

[4] idem, p. 10.

[5] A Rebelião das Massas, São Paulo, Martins Fontes, 1987.

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