Da contemplação amorosa

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

25 de janeiro de 1995

Transcrição de três aulas gravadas, corrigida pelo autor.

Et voici que l’amour nous confond à l’objet même de ces mots,
Et mots pour nous ils ne sont plus, n’étant plus signes ni parures,
Mais la chose même qu’ils figurent et la chose même qu’ils paraient.

(Saint-John Perse, Amers, Mer de Baal, 4).

  1. Da Contemplação Amorosa1

A mais remota inspiração intelectual de meu trabalho sobre Aristóteles vem talvez de minha reação a algumas leituras, entre as quais a da Defense of Poetry de Shelley, a da Introduction à la Métaphysique de Bergson, a do Nouvel Esprit Scientifique de Bachelard e a da Estetica come Scienza dell’Espressione e Linguistica Generale de Benedetto Croce — tudo isto mais de vinte anos atrás. Esses autores, por diferentes que fossem entre si, tinham em comum a crença num dualismo insuperável que cindiria a inteligência humana em funções opostas e estanques.

Por uma inclinação pessoal, pertenço à raça daqueles que buscam em tudo a unidade e a conciliação. Considero Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz e Schelling os mais eminentes representantes dessa raça na cultura do Ocidente. No Oriente, Shânkara e Ibn ‘Arabi.

É verdade que a existência humana sobre a Terra é luta, divisão, precariedade, carência, incompletude. Mas fazer da mutilação um princípio metafísico absoluto, ou mesmo uma característica estrutural e imutável da essência humana sempre me pareceu um abuso, uma projeção universalizante de experiências contingentes, ou, pelo menos, é fazer do estado humano médio a régua máxima da perfeição concebível. É a covardia, é a depressão que leva um homem a culpar o universal, fundando sua derrota num princípio metafísico que é apenas a ampliação paranóica da sua própria divisão interior. Quem cede a essa tentação torna-se em breve incapaz de conceber a idéia mesma de universalidade, que casa inseparavelmente a unidade e a infinitude. O universal está, por definição, acima de todas as culpas, porque está acima de todas as divisões.

De outro lado, o esforço de justificar o universal tomou com freqüência o sentido de um racionalismo, buscando demonstrar a racionalidade do real tomado como um todo. Ora, racionalidade, se bem compreendida, não é outra coisa senão proporcionalidade e harmonia (ratio = proportio); e um todo não pode ser dito harmônico e proporcional senão de uma destas duas maneiras: ou em relação a um outro todo, ou na conformação de suas partes constituintes. O universal caía fora da possibilidade de ser captado por uma ou outra dessas categorias, na medida em que, por um lado, era único e sem segundo, e, de outro lado, sua unidade transcendia a de uma mera relação entre partes. Deste modo, atribuir ao universal quer a racionalidade, quer a irracionalidade, me parecia um abuso tão grande quanto o de negar o universal mediante um dualismo irrecorrível.

Desde muito cedo, portanto, se desenvolveu em mim a convicção de que a unidade do universal é metafisicamente necessária e de que, por outro lado, ela não cabe nos nossos conceitos correntes de razão e irrazão.

A contínua meditação do problema tomou logo em mim a seguinte forma: o universal, que se impõe como evidência, não pode no entanto ser conceituado. Invertia-se assim a fórmula de Kant, segundo o qual as realidades metafísicas só podem ser pensadas, mas não conhecidas: o universal pode ser conhecido, mas não pode ser pensado. (Por esta e outras razões, Kant sempre me pareceu apenas um genial trapalhão.)

Aqueles a quem essa conclusão pareça heterodoxa e paradoxal esquecem que poder ser conhecido sem poder ser pensado é a característica mais primária e evidente de todas as coisas reais, a começar por nós mesmos. Conheço-me a mim mesmo por direta evidência que me faz autor de meus atos, sujeito de meus estados interiores, objeto das ações alheias, etc. Sempre que me apreendo intuitivamente, me apreendo como unidade. Mesmo para sentir-me dividido tenho de me apreender como unidade, caso contrário me identificaria com um dos lados e esqueceria o outro, não sentindo a divisão (é o caso das personalidades múltiplas). Conheço-me, portanto, como unidade. No entanto, toda tentativa de me pensar como tal, de produzir um conceito, uma noção ou um símbolo que me abarque e me apresente a mim mesmo como unidade fracassa rotundamente: produzo aspectos, perfis, sinais, e isto é tudo. Na melhor das hipóteses, crio um símbolo que, sem me abarcar efetivamente, indica intencionalmente a minha unidade (como por exemplo a sucessão de episódios de uma narrativa indica intencionalmente a unidade de um personagem, sem realizá-la de fato). Conheço-me como todo, penso-me por partes.

Mas, nessa distinção, “pensar” não designa só o raciocínio discursivo, mas todas as demais funções cognitivas: a imaginação, a memória, o sentimento. Nenhuma delas pode abarcar aquele todo que, não obstante, conheço perfeitamente bem e que sou eu mesmo.

Do mesmo modo, conheço perfeitamente bem minha mãe, a mulher a quem amo, os filhos que gerei, os meus amigos. Conheço-os e reconheço-os imediatamente como totalidades insubstituíveis sempre que se apresentam. A passagem do tempo, as mudanças de aparência, a queda dos cabelos, o emagrecimento, a doença, a velhice, em nada afetam esse reconhecimento: cada um desses seres é sempre o mesmo e não será jamais um outro. No entanto, se procuro pensá-los como conceitos, imaginá-los, recordá-los ou senti-los, já não tenho diante de mim senão um sinal ou símbolo, uma fatia ou fragmento que só pode significar o todo na medida em que de antemão eu conheça esse todo e tenha portanto a aptidão de reconhecê-lo por um indício. Cada ser humano pode ser conhecido como um todo, mas só pode ser pensado (imaginado, recordado, sentido) por partes sucessivas, cuja soma jamais o completa.

O universal, nesse sentido, não é mais nem menos misterioso do que a substância singular a que chamamos “pessoa humana”: cognoscível como todo, impensável exceto em partes e signos.

Ora, pensar (ou imaginar, ou recordar, ou sentir) é produzir em nós, voluntária ou involuntariamente, um signo, uma “figura” para representar algo que ela indica e que a transcende.2 O pensar (sempre no sentido abrangente do termo) é necessariamente precário e subentende uma faculdade cognitiva superior, capaz de reconhecer no todo o objeto que ele indica por partes. Qual a natureza dessa faculdade superior?

O objeto que não pode ser pensado, que transcende a representação subjetiva e jamais nela se esgota é algo que, radicalmente, não depende de nós, não está à nossa mercê, não é invenção nossa e só pode portanto ser aceito, recebido.

Aceitá-lo, recebê-lo, é respeitar sua integridade, nada projetar nele, nada acrescentar nem tirar. Implica, portanto, nada menos que o seguinte: desejar que ele seja o que é, não desejar que seja outra coisa. Esta plena aceitação respeitosa, porém, não pode ser somente passiva, sob pena de deixar amortecer o interesse que temos no objeto e, portanto, de fazê-lo desaparecer do nosso círculo de consciência. Tem de ser, ao contrário, uma aceitação desejosa: ela é um desejo ativo de que o objeto seja o que é, permaneça o que é, exista de per si e persista existindo. Ela não se constitui portanto somente de respeito (de re spicere = olhar e voltar a olhar). Ela é, plenamente, contemplação amorosa.

O objeto se oferece a mim como todo no instante e na medida em que o aceito como objeto de contemplação amorosa e, expelindo de mim toda tentativa de pensá-lo, de abarcá-lo conceptualmente, imaginativamente ou sentimentalmente, deixo e quero que ele exista por si diante de mim, eternamente transcendente à minha subjetividade, eternamente independente de tudo quanto eu faça ou pense ou sinta. A contemplação é o esplendor do objeto ante o olhar da humildade que o deseja como tal e que se recusa a alterá-lo no que quer que seja.

Aí, porém, entra a objeção kantiana: só conhecemos os objetos como objetos de nossa representação, e não em si mesmos. Esta objeção sempre me pareceu tautológica, pois resulta em dizer que só ouvimos o que nosso ouvido ouve, só vemos o que nossos olhos vêem, etc. Mas é preciso passar por ela. Todo objeto é, de fato, objeto de representação — mesmo os sentidos só nos dão esquemas representativos, não objetos “em si”. Porém, aí é que está: uma vez chegado ao nosso conhecimento um objeto — por intermédio da nossa representação —, temos duas alternativas: ou pensá-lo, isto é, fazer dele um signo ou conceito que entrará no rio dos nossos pensamentos para aí ser comparado, transformado, refutado, etc., ou, ao contrário, esperar para conhecê-lo mais e mais, isto é, esperar e desejar que ele nos entregue mais e mais de si mesmo. Qualquer de nossas faculdades representativas pode, a cada instante, submeter-se à sua própria mecânica interna ou ao objeto que se lhe oferece, pode recuar para contemplar-se a si mesma ou continuar a fitar o objeto. À primeira alternativa denomino reflexão (subentendendo que há também uma reflexão imaginativa, sentimental, etc.). À segunda denomino contemplação. Quando persistimos na atitude contemplativa, a faculdade, o canal representativo se torna cada vez mais dócil, mais transparente, até que, chegado um determinado limite, se manifesta com perfeita clareza a diferença entre o que é projeção e o que é pura recepção: mesmo admitindo-se que não atinjo, como diz Kant, o “objeto em si mesmo”, – coisa que de fato não admito, mas que não cabe discutir aqui3 –, capto ao menos a distinção entre o que ele me dá por si mesmo e o que eu, de minha parte, projeto nele. Trata-se evidentemente de um exercício de autoconsciência, onde, na medida mesma em que conscientizo minha própria ação projetiva, consigo distinguir o projetado e o recebido, e atino, enfim, com o objeto como tal, e já não como simples representação (e muito menos projeção) minha. O erro de Kant foi aí o de confundir a percepção vulgar, que é ferozmente projetiva, com a contemplação amorosa, autoconsciente, que termina pelo reconhecimento evidente e apodíctico, da objetividade como tal. A diferença decisiva é a que existe em projetar um desejo subjetivo, alheio ao conteúdo oferecido pelo objeto, ou projetar amorosamente o desejo do objeto como tal.

A contemplação amorosa é, portanto, passiva em relação ao objeto, ativa e crítica em relação ao sujeito. É dominar-se para não interferir, para não macular o objeto. (Há evidentemente algum parentesco entre o que denomino contemplação amorosa e a redução fenomenológica husserliana. A diferença aparecerá com plena clareza mais adiante.)

A contemplação amorosa sempre parte de um objeto da representação (ou mesmo de um objeto de pensamento), para chegar ao ponto em que o objeto fala por si, transcendendo o canal representativo (ou conceptual) que não funcionou senão como o comutador que aciona um mecanismo que em seguida escapa ao seu controle.

Ora, a única diferença que existe, nesse sentido, entre as substâncias corporais e o universal é a do canal pelo qual tomamos notícia inicial da sua presença: os sentidos, no primeiro caso, o pensamento abstrato, no segundo. Os sentidos nos dão, por exemplo, notícia de uma presença humana (a qual em seguida podemos pensar ou contemplar). O pensamento não “capta” o universal, mas nos dá notícia dele através da contradição lógica a que chegamos na tentativa de negá-lo. Esta contradição, que reflete a necessidade metafísica do universal, pode, em seguida, ser simplesmente pensada ou então contemplada. Neste último caso, a necessidade do universal passa a ser aceita, desejada, amada, até que se nos apresente como algo que nos abarca, nos modela, nos estatui e nos conserva na existência e no próprio ato de meditá-la. Não existe hiato, neste sentido, entre o conhecimento filosófico de Deus, a experiência mística de Deus e o puro e simples amor a Deus, mas a perfeita continuidade de uma intensificação contemplativa. O Deus dos filósofos, se fosse apenas dos filósofos, não seria Deus, mas apenas o conceito de Deus, captado e logo em seguida imediatamente pensado, isto é, mutilado, esquecido e negado. O Deus dos filósofos ou é objeto de contemplação amorosa — aceitação, fé, desejo — e é portanto o mesmo Deus de todo o mundo, ou então é apenas um Deus pensado, um simulacro de Deus, e portanto não é o Deus dos filósofos, mas apenas o Diabo puro e simples. Eis o que Sto. Tomás percebeu com perfeita clareza e o que Pascal não quis perceber, movido pela soberba dos humildes e por aquela trágica divisão interior do pensador matemático que, tendo abusado da razão, busca um refúgio no sentimento, sem perceber que transita apenas entre o mental e o mental e que o verdadeiro objeto de sua busca está para além dessa vulgar disputa entre faculdades humanas4.

 

12 de janeiro de 1995.

 

  1. Conhecimento e realidade

Foi por meio dessas considerações que cheguei à conclusão da total inanidade das disputas em torno da pergunta: o pensamento capta ou não a realidade? O pensamento jamais capta realidade nenhuma, nem é essa a sua função. O pensamento refere-se à realidade de uma maneira exclusivamente intencional, mediante signos, cujas combinações não expressam o real, mas o possível. O real como tal é conhecido única e exclusivamente pela contemplação amorosa; o pensamento (sempre em sentido lato) conhece-o somente enquanto objeto de significação intencional. Mas o real que nos chega, e que pode ser conhecido pela contemplação amorosa, constitui-se apenas do universal intensivo (não extensivo) e dos seres singulares que, em quantidade finita (e quer isoladamente, quer em grupos, conjuntos, ordens, hierarquias etc.), ingressam no círculo da nossa experiência. Mesmo supondo-se que estendêssemos a contemplação amorosa a todos eles, e que chegássemos assim a conhecer uma fatia imensa do real, ainda haveria lacunas infindáveis. O conhecimento que temos sobre o universal intensivo e sobre os seres singulares, todo somado, está muito longe de igualar-se ao universal extensivo. Esse hiato é que é preenchido pelo pensamento, ou melhor, pelo mental em geral (que inclui imaginação, sentimento etc.). Pensar, imaginar, etc., é apenas um esforço de saltar ou preencher o hiato entre o mundo conhecido (universal intensivo + seres singulares) e o universal extensivo. O objeto próprio do mental é o “irreal” possível — em todas as gradações da possibilidade, incluindo a necessidade ou certeza lógica5 — e não o real. O mental dá-nos a estrutura das relações possíveis dentro da qual podemos conceber aquilo que não conhecemos, mas que preenche o intervalo entre o conhecido e o universal extensivo. O conhecimento que temos desse intervalo é necessariamente potencial; por definição, ele jamais se atualiza por completo. Por que não pode atualizar-se? Porque isto seria substituir o todo universal real por um todo universal mental, que absorveria em si o real, o que é obviamente um contra-senso. Os famosos “limites do conhecimento humano” são apenas, enfim, os limites do mental. A contemplação amorosa, em si, não é nem limitada nem ilimitada, pois, só conhecendo os seres (o universal inclusive) na totalidade singular de cada um, não soma nem diminui.

É necessário distinguir agora radicalmente a contemplação amorosa da redução fenomenológica, após ter reconhecido o seu parentesco. Esta visa a captar “essências”, aquela capta a unidade indissolúvel de essência e existência, a que chamamos “ente singular”. Se captamos a singularidade de um ente, captamos, no mesmo ato, sua essência, mas não como unidade lógica separada, e sim como identidade de uma presença que revela imediatamente o que é6. Dito de outro modo, captamos imediatamente gênero, espécie e singularidade num todo indissolúvel: apreender “este lápis” não é apreender “lápis” em geral nem “este objeto” de essência indeterminada, nem é captar um número indeterminado de membros da espécie “lápis”; é captar um determinado membro de uma determinada espécie e é captá-lo como existente aqui e agora. Contemplação amorosa e redução fenomenológica se parecem entre si por serem modos de conhecimento contemplativos, descritivos e não analíticos. Mas a redução fenomenológica dirige-se à essência como coisa distinta da existência, portanto a um “irreal”, ao passo que a contemplação amorosa dirige-se ao real como tal, isto é, à existência de uma essência num ser determinado e presente. A teoria da contemplação amorosa está para a fenomenologia de Husserl assim como o aristotelismo está para o platonismo, mutatis mutandis: os “entes” da minha teoria estão para as “essências” de Husserl exatamente como a “substância” aristotélica está para as “Idéias” platônicas. O apelo de Husserl — “Rumo às coisas mesmas!”, Zu den Sachen selbst — não pode ser atendido plenamente pela fenomenologia mesma porque ela não visa a coisas reais, e sim a essências separadas. A tentativa posterior de Husserl de reintegrar na sua visão filosófica as coisas reais — pela teoria do Lebenswelt — foi tardia e ficou só no programa. É esse programa que, a meu modo, procuro realizar, sendo fiel ao mestre na medida mesma em que me afasto de seu métodosem me afastar de seus ideais, de seus valores, de seus conceitos básicos e de seus critérios de aferição. A teoria do Lebenswelt é a mais meritória tentativa de reintegrar na filosofia o conhecimento pré-filosófico, como raiz filosoficamente válida (ou validada pela reflexão) do conhecimento filosófico mesmo. Meu esforço é no sentido de dar um passo além, discernindo a metodologia implícita do conhecimento pré-filosófico, à qual chamo contemplação amorosa. Por desconhecê-la, os filósofos — com raras exceções — têm substituído o mundo pensado ao mundo dado, ou, como resumiu o poeta Bruno Tolentino, o “mundo como idéia” ao “mundo como tal”7. Enquanto continuar nesse rumo, a filosofia não terá como escapar à falsa disputa entre os que querem abarcar o mundo com o pensamento e os que negam ao pensamento todo alcance exceto o de uma ficção convencional. Os primeiros caem nas decepções periódicas do racionalismo e acabam no ceticismo. Os segundos, não crendo em conhecimento teorético puro, apelam à dialética da ação e, para transformar o mundo, acabam criando uma ideologia totalitária que, tudo explicando, termina num neo-racionalismo absoluto. Esses erros são complementares e giram em círculo, um produzindo o outro.

Mas a teoria da contemplação amorosa requeria, como complemento, uma teoria do discurso, pelas razões seguintes:

Se a contemplação amorosa ou conhecimento pré-filosófico (intensificado ou não pela reflexão filosófica) nos dá o conhecimento da totalidade, isto é, da unidade como tal, o mental nos dá o conhecimento das várias formas de proporcionalidade e harmonia, isto é, das formas indiretas da unidade; formas estas indefinidamente variadas e complexas, tanto quanto o número das espécies e dos entes possíveis.

Neste sentido é que digo que todas as faculdades cognitivas — raciocínio, imaginação, sentimento, etc. — são racionais8: todas fundam-se em princípios de equivalência, proporcionalidade e harmonia, que traduzem em modalidade por assim dizer “quantitativa” a identidade e a unidade.

Colocadas as bases metafísicas na teoria da unidade metafísica (que adaptei de Ibn ‘Arabi); estabelecido o método cognitivo (na minha teoria da contemplação amorosa); estabelecido o fundamento absoluto da objetividade do conhecimento (na Teoria da Tripla Intuição9); extraídos daí os princípios de uma psicologia do conhecimento (na Tripla Intuição e em O Caráter como Forma Pura da Personalidade10), aplicada em seguida para fins polêmicos na minha defesa incondicional da substancialidade da alma-consciência individual (no meu trabalho em preparação A Alienação da Consciência e no final de A Nova Era e a Revolução Cultural11), julguei que, para dar maior consistência ao conjunto, devia investigar em seguida os princípios do conhecimento indireto, ou discursivo, sobre os quais já esboçara alguma coisa no capítulo “A dialética simbólica” do livro Astros e Símbolos12 e nos meus trabalhos de teoria e crítica literária13. Nisto, como em tudo o mais, ative-me fielmente à minha regra pessoal de nunca inventar uma teoria nova quando houvesse alguma teoria antiga que, quer inalterada quer submetida a adaptações, pudesse dar conta do recado. Ora, a Teoria dos Quatro Discursos é apenas o reconhecimento de que os princípios gerais do conhecimento discursivo, que eu buscava, já estavam em Aristóteles, pelo menos de maneira implícita; de modo que, em vez de reinventar a roda, simplesmente inventei a calota, isto é, uma nova apresentação e revestimento de uma idéia de Aristóteles, reintegrando em seguida quase intacta essa parte do aristotelismo na filosofia que eu mesmo estava desenvolvendo, e cuja motivação inicial não estava em nada de aristotélico, mas sim no meu intuito de responder ao dualismo de Shelley, Bergson, Bachelard e Croce e de desenvolver a teoria do Lebenswelt husserliano para revalorizar o conhecimento pré-filosófico.

Todo esse trabalho de construção teórica positiva foi entremeado não só de aplicações pedagógicas (no curso do Instituto de Artes Liberais), mas também de esforços críticos e polêmicos complementares: contra a dissolução da teoria na prática (O Jardim das Aflições14); contra a dissolução da filosofia na ideologia (A Nova Era e a Revolução Cultural); contra o pensamento coletivista que prostitui a consciência individual à pretensa autoridade do número (O Imbecil Coletivo15), etc. Como o público até agora só conhece a parte polêmica do meu trabalho (pois a parte teórica, em forma de rascunhos, apostilas e edições privadas, quase confidenciais, não está pronta para publicação decente), o resultado é que este pacífico servidor da unidade e da conciliação está se tornando conhecido como um hidrófobo terrorista intelectual, o que não deixa de ser divertido16.

 

14 de janeiro de 1995.

 

  1. Aplicações em Filosofia Moral

Das duas teorias que criei no campo da gnoseologia — a tripla intuição e a contemplação amorosa —, extraí umas quantas aplicações de ordem moral, que foram expostas ao público no meu curso de Ética proferido em 1994 na Casa de Cultura Laura Alvim, todo gravado em fita e depois transcrito em apostilas.

A filosofia moral, ou ética, deve para mim tomar o seguinte rumo:

  1. Distinguir entre os códigos morais historicamente vigentes em diversas épocas e sociedades e a moral essencial, universal, que se obtém por simples redução fenomenológica. Aqueles compõem-se de normas, no sentido de Kelsen, e esta compõe-se de princípios. A discussão filosófica da moral deve ater-se ao campo dos princípios. Assim, o relativismo antropológico, sociológico e histórico pode conciliar-se com o dogmatismo dos princípios. Estes tornam-se conhecidos do investigador por abstração, mas em si não são abstratos: são o conteúdo concreto, o sentido efetivo por trás das normas historicamente vigentes. Estas é que, expressando de maneira indireta e às vezes simbólica o conteúdo dos princípios, são abstratas em relação a eles.
  2. Os princípios universais assim encontrados devem obedecer aos seguintes quesitos:
  3. Têm de ser identicamente os mesmos em todas as morais historicamente vigentes.
  4. Tem de estar subentendidos, como pressupostos lógicos, na aplicação prática dessas normas, em todos os casos historicamente considerados.

Dentre os princípios assim encontrados, destaca-se o da responsabilidade. Não há nenhum sistema moral no mundo que, por trás de suas regras, não tenha um de seus fundamentos na idéia de que:

1º, a responsabilidade por determinados fatos tem de ser imputada necessariamente a seus autores;

2º, esses autores são sempre seres particulares e concretos, substâncias no sentido aristotélico, e jamais, em caso algum, coletivos abstratos ou meros “universais”;

3º, existe continuidade substancial entre o ser que foi autor do ato e aquele a que posteriormente se atribui a responsabilidade por esse ato.

As morais históricas divergem enormemente quanto às categorias de seres a que se devem aplicar esses princípios. Algumas sociedades incluem entre os seres moral e juridicamente imputáveis os demônios, as forças da natureza, até mesmo os animais (até o séc. XVIII persistiu no Ocidente o hábito de punir com a excomunhão os porcos que invadissem plantações). O que é comum a todas é a crença no princípio da responsabilidade, na substancialidade do ente responsável e na continuidade substancial desse ente no trânsito entre ato e imputação.

III. Uma vez demonstrado esse ponto, a tarefa seguinte da filosofia moral é fundamentar racionalmente os princípios assim encontrados, ou seja, fundar a sua universalidade extensiva numa universalidade lógica, ou necessidade metafísica.

Aí é que entra a contribuição gnoseológica. Tendo demonstrado, pela Tripla Intuição, o fundamento absoluto da objetividade cognitiva, e pela Contemplação Amorosa a natureza do conhecimento objetivo, fundo-me em ambas para demonstrar a relação entre conhecimento e responsabilidade. Aí verifica-se que determinadas sociedades antigas ou primitivas podem ter “errado” na aplicação do princípio de responsabilidade a determinados entes não providos de autoconsciência, — como aliás erramos nisto com freqüência ainda hoje, e não sabemos por exemplo fixar adequadamente as fronteiras da responsabilidade no caso das chamadas personalidades psicopáticas ou da indução hipnótica —, mas que a aplicação errônea não desmente a veracidade intrínseca do princípio.

Na tripla intuição, demonstro que o fundamento da objetividade cognitiva reside num nexo indissolúvel entre sujeito, objeto e ato cognitivo, e que essa relação se dá de maneira exemplar, arquetípica mesmo, na percepção da luz, onde a luz é a um tempo objeto e condição da percepção, não podendo estes aspectos ser separados senão por mera distinção mental (no sentido escolástico) posterior. Do mesmo modo, e simultaneamente, pelo lado do sujeito, a sensibilidade à luz é objeto e condição da percepção, em modo inseparável. Daí que a luz, tradicional símbolo do ato cognitivo, seja algo mais do que mero símbolo: ela é o fundamento corporal, existencial, do nexo sujeito-predicado, e o “apoio sensível” sobre o qual se erige toda a lógica humana.

Dessa teoria decorre que o indivíduo humano só se conscientiza como sujeito cognitivo no ato mesmo em que se conscientiza como objeto que sofre a ação de uma fonte de luz. Os dois aspectos são inseparáveis, o que prova a falácia de todo idealismo subjetivo, assim como de todo dualismo sujeito-objeto. O mundo físico, com sua luz “corpórea”, é a morada mesma do Espírito. Ou, como disse Paul Éluard,

há outros mundos, mas estão neste.

Em oposição, assim, ao “materialismo espiritual” que critico asperamente em O Jardim das Aflições, estabeleço um “espiritualismo material”: o “materialismo” de um mundo feito de Espírito, transparência, inteligibilidade.

Recorro em seguida a um outro fundamento gnoseológico: a teoria da autoconsciência. Conforme demonstrei em O Jardim das Aflições, a autoconsciência nem é mera introjeção de papéis sociais, como pretendem certas correntes antropológicas, nem é um atributo substancialmente associado de uma vez para sempre à condição biológica humana: é uma possibilidade lógica, ou, se quiserem, uma potência no sentido aristotélico, que passa ao ato no instante em que o ser humano admite o princípio da responsabilidade, ou autoria de seus atos, no sentido de admitir que este seu corpo de agora é “o mesmo” que instantes atrás fez tal ou qual coisa.

Dito de outro modo, o princípio de responsabilidade é ao mesmo tempo cognitivo e moral. Ele é o fundamento da autoconsciência individual, assim como é o fundamento das morais históricas: nele se reencontram a descrição fenomenológica da consciência individual e a unidade subjacente das morais históricas.

Dessas constatações extraio uma série de sugestões metodológicas para o estudo de questões morais concretas, seja do ponto de vista ético-normativo, seja do ponto de vista histórico, sociológico, etc.

Eis aí, barbaramente reduzido, o que expliquei no meu curso de Ética.

Meu amigo Bruno Tolentino censura-me por deixar todas essas idéias em estado de rascunho — ou, pior ainda, de gravação em fita — em vez de lhes dar uma divulgação decente em forma de livro. Mas a filosofia, quando o é de verdade, não reside nos textos, nas “obras” filosóficas, e sim no filosofema, no conteúdo essencial de uma conexão de pensamentos, intuições e outros atos cognitivos que forma o mundo e o estilo próprios de um determinado filósofo. É isto o que nos permite distinguir entre “as obras de Aristóteles” e “a filosofia de Aristóteles”. (Esta distinção é impossível em literatura: em que consiste a poesia de Shakespeare senão nos textos de Shakespeare?) Há filósofos sem obra — a começar do pai de todos nós: Sócrates —; há filósofos cujo pensamento nos chega por obras escritas por testemunhas ou por ajudantes (não conheceríamos o pensamento de Husserl sem a redação de Fink). Mas não há filósofo sem filosofema — e aquele que publique dezenas ou centenas de livros eruditíssimos, com opiniões de estilo filosófico sobre assuntos filosóficos, não se torna por isto um filósofo17. A filosofia de um filósofo não está em seus textos, mas num certo modo de ver as coisas, que é transportável para fora deles e participável por quem quer que, saltando sobre os textos, faça seu esse modo de ver, integrando-o no seu próprio. Pode-se, assim, ser aristotélico ou hegeliano de pleno direito sem sacrifício da originalidade e independentemente da grandeza ou pequenez do talento próprio, mas não se pode ser shakespeareano ou cervantino senão por imitação inferior. Como é assombroso o mistério das vocações, que uma pseudociência animalesca reduz a uma questão de pontos num teste de QI…18

Quando decidi devotar minha vida ao serviço desta dama, formosa entre todas, que os antigos denominaram Afeição à Sabedoria, e que não é no fundo senão a figura jovem e incompleta daquela que no seu esplendor maduro será a Sabedoria mesma; nesse instante, digo, tomei consciência de que deveria, por muitos e longos anos, refrear e sacrificar meu fortíssimo impetus scribendi em favor do impetus cognoscendi(e mesmo do impetus agendi, de vez que a filosofia inclui como componente essencial a vocação pedagógica).

Mais ainda: dialética e dialógica por essência e não por acidente, a Filosofia move-se incessantemente em direção à Sabedoria, e por isto só pode viver bem em estado de rascunho19. Não é coincidência que a mais impressionante das obras filosóficas, a de Aristóteles, não nos tenha chegado senão nesse estado de incompletude e provisoriedade20. O texto filosófico jamais terá a perfeição formal e diamantina do poema, pois a perfeição que a filosofia busca é por excelência interior e muda, impressiva, por assim dizer, e não expressiva como a beleza artística.

 

25 de janeiro de 1995.

 

NOTAS

  1. Rascunho para uso em classe no Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades (Instituto de Artes Liberais). Proibida a reprodução por quaisquer meios.
  2. Engana-seredondamente quem imagine que o sentimento, ao contrário das faculdades representativas, nos dá o objeto mesmo na sua imediatidade. O sentimento é apenas a reação parcial e momentânea do nosso ser a um aspecto determinado do objeto que a nós se apresenta no momento. Por exemplo, a mesma mulher que neste momento me desperta atração e deleite sensual pode, num outro momento, despertar-me saudade, melancolia, raiva, ciúme, etc. Cada um desses sentimentos é apenas um signo, dentro de mim, da totalidade vivente que ela é fora e independente de mim, e que reconheço instantaneamente como tal para além e por cima dos sentimentos transitórios que me desperte. O “sentimento” é também representação, e não apresentação. A expressão “conhecível como todo, impensável como todo” pode portanto ser substituída, sem erro, por “conhecível como todo, insensível como todo” (ou “somente sensível por partes e aspectos”).
  3. “Kant e o primado do problema crítico”.
  4. Otipo do “matemático arrependido” que cai no irracionalismo acreditando aproximar-se de Deus quando se aproxima apenas de um outro lado de si mesmo se tornaria dominante, no século XX, entre os cientistas com preocupações filosóficas. O livro de Ernesto Sábato, Homens e Engrenagens, é a súmula da experiência interior dessas pessoas, buscadoras sinceras, sem dúvida, mas que não sabem que Deus não faz distinção de talentos individuais e que a contemplação amorosa está acima da razão e da irrazão, do pensar e do sentir, etc.
  5. Distinçãoimportantíssima: a certeza lógica, mesmo absoluta e imediatamente fundada no princípio de identidade, só nos dá a conhecer a necessidade — teórica — de algo; mas não nos dá esse algo como objeto de experiência. Portanto, quando digo que o pensar só conhece o possível, a expressão “possível” tem aqui um sentido mais amplo do que na Teoria dos Quatro Discursos, e designa, em conjunto, os quatro graus ali considerados. Conhecer pelo pensamento é conhecer (no sentido daquela teoria) a possibilidade, a verossimilhança, a probabilidade ou a necessidade de algo, e não esse algo como tal. Esta distinção aplica-se a todo o mental — imaginação, sentimento, conjetura, etc. Todas estas funções são “discursivas” exatamente como o raciocínio. Quem não capte este ponto arriscará confundir minha concepção com a de Bergson, por exemplo, ou com a de Husserl.
  6. Sobreo conhecimento imediato da essência na presença, v. meu trabalho horrivelmente escrito mas, creio eu, correto nas idéias, Universalidade e Abstração (São Paulo, Speculum, 1983).
  7. Apoesia de Tolentino — quer ele tenha premeditado isto ou não — é um esforço heróico e vitorioso para descer do pseudo-céu das essências “rumo às coisas mesmas”, entre as quais e só entre as quais se encontra o caminho do verdadeiro céu. Ela atende, tanto quanto meu trabalho, ao apelo do último Husserl, e restaura, numa cultura fatigada de platonismos, o valor do mundo real, do mundo da Encarnação, cuja recusa tenaz, ainda que inspirada em motivos supostamente edificantes, é a essência mesma do diabolismo. Sua Katharina aceita o Cristo na mesma medida em que vai admitindo a realidade patente de impulsos e desejos banais, na medida em que contempla amorosamente objetos e seres do ambiente em torno, um relógio, um lagarto, uma folha, criaturas desconhecidas no reino das essências, mas, com pleno direito, habitantes do Lebenswelt; e quanto mais se detém na contemplação e aceitação deste mundo, mais se eleva em direção ao eterno.
  8. Meuconceito dessas faculdades — inspirado em Dante Alighieri, no simbolismo das Artes Liberais e na psicologia espiritual de Ibn ‘Arabi — está no livro Da Tripla Intuição (apostila do IAL).
  9. Apostilado Instituto de Artes Liberais. Trabalho inédito em livro.
  10. Rio,Astroscientia Editora, 1993.
  11. Rio,IAL & Stella Caymmi, 2ª ed., 1994.
  12. São Paulo,Nova Stella, 1985.
  13. OCrime da Madre Agnes ou A Confusão entre Espiritualidade e Psiquismo (São Paulo, Speculum, 1983); Símbolos e Mitos no Filme “O Silêncio dos Inocentes” (Rio, Stella Caymmi, 1993); Os Gêneros Literários. Seus Fundamentos Metafísicos (Rio, Stella Caymmi, 1994) e A Vingança de Liberty Valance. John Ford e a “Morte do Western” (em preparação).
  14. OJardim das Aflições. Epicuro e a Revolução Gnóstica. A sair ainda em 1995 por Stella Caymmi Editora.
  15. OImbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras, a sair proximamente por Stella Caymmi Editora. Reúne artigos publicados no Jornal do Brasil, na Tribuna da Imprensa e na revista Imprensa, bem como alguns inéditos.
  16. Meutrabalho incluiu também algumas investigações no campo da Religião Comparada (O Profeta da Paz. Estudos sobre a Interpretação Simbólica da Vida do Profeta Mohammed/Maomé, obra inédita, premiada na Arábia Saudita), e do simbolismo astrológico e alquímico (Astrologia e Religião, São Paulo, Nova Stella, 1986; Alquimia Natural e Espiritual, apostila), bem como no da psicologia (O Conceito de Psique, apostila). Esses trabalhos não são marginais em relação ao meu esforço filosófico, mas representam uma etapa de preparação e treino.
  17. Oabuso do termo tornou-se, no Brasil, regra geral.
  18. Osnorte-americanos têm-nos enviado lixo mental em tais quantidades — o feminismo, a filosofia da História de Paul Kennedy, o relativismo absoluto de Richard Rorty, a campanha pela liberalização da cocaína e concomitante repressão ao fumo, a negritude anti-semita, o anti-anti-semitismo paranóico, a defesa da eutanásia, a Curva de Bell,  etc. —, que julgo da máxima urgência uma ruptura de relações culturais com os EUA até que o grande irmão do Norte recupere o juízo.
  19. Avida presente como rascunho do ser é, aliás, um dos temas constantes da obra do próprio Tolentino.
  20. Emcontrapartida, sempre me pareceu uma singular inconsistência que o filósofo do fluxo vital, que o inimigo declarado de toda clausura racional, Henri Bergson, poucos anos antes de sua morte declarasse oficialmente encerrado o seu labor filosófico, dizendo que seu pensamento estava expresso de maneira acabada e definitiva nas suas obras publicadas.

 

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