Olavo de Carvalho


O Globo, 30 de dezembro de 2000

Um homem de pensamento deve ser fiel à verdade tal como ela se lhe apresenta a cada momento no exame das questões concretas, sem deixar-se envolver por uma atmosfera mental que tinja todo o seu horizonte de consciência com uma tonalidade geral e prévia de “esquerda”, de “direita” ou seja lá do que for. Pessoalmente, nunca me manifestei a favor de nenhuma política “de direita”, e é por pura indução psicótica e ressentimento de complexados que uns sujeitos de esquerda tentam enxergar em mim um feroz direitista. Deduzem isto das críticas que lhes faço. Raciocinam na base schmittiana do “Quem não está conosco está do outro lado”, mostrando que nem sequer em imaginação podem conceber que exista uma inteligência livre, capaz de atacar o mal sem cair no automatismo mentecapto de supor que a simples inversão da ruindade faria dela um bem.

Logicamente falando, a posição política de um indivíduo jamais pode ser inferida das críticas, por mais duras, que dirija a uma ideologia ou partido, pela simples razão de que críticas idênticas podem ser feitas desde várias posições ideológicas. O sionismo foi atacado com igual vigor pela extrema-direita e pelos comunistas. O fundamentalismo islâmico é tão abominado pelos cristãos conservadores quanto pela esquerda feminista e gay ou pelos liberais modernistas e ateus.

Só uma tomada de posição positiva em favor de determinadas políticas é que define identidade e compromisso ideológicos. A crítica é livre e pode vir de todas as direções.

A mentalidade comunista, no entanto, desconhece a tal ponto a liberdade de pensamento, subjuga tão pesadamente a inteligência ao comando partidário, que chega a catalogar a ideologia de um sujeito não pelas intenções e valores que ele professe, mas pela simples conjecturação hipotética e quase sempre paranóica do benefício político ou publicitário que partidos ou correntes possam auferir de suas palavras, ainda que oportunisticamente e contra a vontade dele. Na imaginação dos comunistas, ninguém afirma “x” ou “y” com a simples intenção de dizer a verdade, mas sempre com a premeditação de algum resultado político, mesmo remotíssimo. É que eles pensam assim, eles são indiferentes à verdade e à falsidade e só abrem a boca em vista de efeitos políticos. Por isso imaginam que o resto da Humanidade também é assim.

Foi com base nesse raciocínio alucinadamente projetivo que o Estado soviético chegou a condenar como crime a indiferença política, por julgar que ela denotava sinistras intenções contra-revolucionárias. Boris Pasternak foi parar na cadeia por conta disso.

Da minha parte, estou persuadido de que o homem de pensamento deve ser escrupulosamente comedido ao opinar a favor de qualquer política em especial: ele deve simplesmente fazer a crítica do que é ruim e perverso, deixando ao público e aos políticos, àqueles que se orgulham de ser “homens práticos” e que têm o dever de sê-lo, a decisão de políticas positivas que hão de suprimir ou remediar o mal.

Ademais, se critico a esquerda é porque hoje só existe esquerda. Não há direita nenhuma no Brasil. Há direitistas, mas cada um fechado nas suas convicções privadas, sem qualquer ação de conjunto. A prova mais patente é que a palavra “direita” só aparece na imprensa com conotações sombrias e criminais, jamais como a designação de uma corrente política que tenha o direito de existir como qualquer outra. Apontar um homem como direitista é acusá-lo de conspirador, de golpista, de corrupto, de torturador. Tanto é assim, que qualquer delito cometido em interesse próprio por analfabetos coronéis do sertão é imediatamente atribuído à “direita”, o que é pelo menos tão absurdo quanto enxergar motivação ideológica esquerdista em todos os crimes cometidos por meninos de rua. Só se pode falar nesse tom, impunemente, de uma minoria de párias sem voz nem poder. O curioso é que aqueles mesmos que sem temor de represália falam da direita nesses termos, provando com isto que ela não tem poder nenhum, querem nos fazer crer que ela existe, que ela é uma força organizada e manda no Brasil. Tudo isso é puro histrionismo de uma esquerda que sabe que está no poder mas não deseja assumir as responsabilidades de sua situação.

Hoje o establishment é esquerdista, a oposição também. Leiam as cartilhas de marxismo-leninismo do Ministério da Educação e me digam se um governo que educa as crianças nessa mentalidade não é comunista em espírito, conformado provisoriamente com o capitalismo que não pode suprimir. E qual governo sem forte inspiração comunista desejaria a supressão do sigilo bancário? Nessas condições, seria hipocrisia eu falar mal da “direita” só para me fazer de bom menino e afetar uma independência estereotipada. A independência autêntica não teme os rótulos que lhe queiram impor e não foge deles mediante o apelo a discursos de ocasião. Diz o que tem de dizer, e pronto. A confusão que façam em torno dela corre por conta da malícia e da sem-vergonhice de cada um.

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