Olavo de Carvalho

Seminário de Filosofia, 9 de janeiro de 1994

A linguagem da mística recorre com freqüência aos paradoxos, que não podem expressar verdade alguma exceto metaforicamente, o que vale dizer: ambiguamente. E quantas vezes, ao longo da História, o amor a Deus não tem se pervertido num amor à ambigüidade, numa rejeição das verdades mais patentes, num rebuscamento de contradições artificiais e desnecessárias! Que esta sofística piedosa tenha o alto propósito de indispor o descrente contra sua própria razão para atraí-lo aos braços da fé, ninguém nega. Que, porém, ela arrisque ter os resultados mais decepcionantes, entre os quais o de confundir o pregador mesmo, é também um fato, ainda que quase nunca reconhecido. Que, enfim, ela possa servir ao demônio tanto quanto pretende servir a Deus, eis aí o que soará como um escândalo, mas que a história do pensamento Ocidental confirma em toda a linha, e que aliás já fora anunciado por Jesus, ao advertir: “Seja o vosso discurso: sim, simnão, não — o mais é conversa do maligno.”

Todos os desvarios da dialética hegeliana, marxista e nietzscheana foram assim prefigurados pela teologia apofática1.

Deus, afirma a Bíblia, confunde a sabedoria dos sábios. Mas será lícito que os sábios se ponham a confundir-se a si mesmos, a pretexto de arrebatamento religioso?

Não bastam, para deslumbrar-nos, os mistérios supremos cuja solução Deus guarda para si? Será preciso semear de paradoxos artificiosos o caminho dos homens sobre a Terra? E que valeriam os mistérios supremos, se não tivessem solução nem mesmo para Deus? Os mistérios valem pelo Sentido, não pela misteriosidade. Eis aí o véu sutilíssimo que separa a mística da mistificação. E todo escrito místico, por natureza, contém sementes de mistificação — os de Simone Weil como qualquer outro. Cabe ao comentário filosófico separar o joio do trigo.

Nas páginas que seguem, vou citando e comentando, sem um plano prévio, as passagens de escritos místicos de Simone Weil onde essa separação é necessária.

Começo pelo trecho que diz:

O bem é impossível. — Mas o homem tem sempre a imaginação à sua disposição para ocultar de si essa impossibilidade do bem em cada caso particular (basta, para cada caso particular que não nos esmague, velar uma parte do mal e acrescentar um bem fictício — e alguns podem fazê-lo, mesmo se eles mesmos são esmagados) e, no mesmo ato, para ocultar de si “quanto a essência do necessário difere da do bem” e impedir-se de verdadeiramente encontrar Deus, que não é outra coisa senão o bem mesmo, o qual não se encontra em parte alguma neste mundo2.

Se não existe um bem em nenhum caso particular, e se de outro lado Deus é “o bem mesmo”, isto é, o bem essencial, então todos os bens particulares são ilusórios e o único bem autêntico é o universal. Mas este universal, se não se encarna em nenhum bem particular, é mera forma conceptual vazia.

Ou existe algum bem neste mundo, ainda que parcial e provisório, ou Deus é uma Idéia platônica.

Simone confunde o parcial com o ilusório, o impermanente com o irreal, o temporal com o nada. Ou faz que confunde, para confundir o descrente, e acaba por se confundir a si mesma.

O desejo é impossível; ele destrói seu objeto. Nem os amantes podem ser um, nem Narciso ser dois. Don Juan, Narciso. Porque desejar alguma coisa é impossível, é preciso desejar o nada3.

Dizer que os amantes buscam a unidade é mera figura de linguagem, que só pode ser levada ao pé da letra por alguém totalmente alheio à experiência do amor carnal. O amante deseja dar-se à amada ao mesmo tempo que a recebe; não desaparecer nela enquanto ela desaparece nele. O amor carnal não é extinção, mas conservação, revigoramento: conservação da espécie, revigoramento do indivíduo e dos laços conjugais. Nem Don Juan nem Narciso têm a menor idéia do que seja o amor carnal. Nem Simone.

A desaparição mútua é precisamente a definição do desejo perverso, isento da mínima parcela de generosidade e sentimento de proteção4.

Nossa vida é impossibilidade, absurdidade. Cada coisa que queremos é contraditória com as condições ou as conseqüências que lhe estão ligadas, cada afirmação que colocamos implica a afirmação contrária, todos os nossos sentimentos estão mesclados a seus contrários. É que somos contradição, sendo criaturas, sendo Deus e infinitamente outros que Deus5.

A resposta é, naturalmente: sim e não. Se nossa vida é impossibilidade, absurdidade, segue-se, pelo princípio de que cada afirmação implica a afirmação contrária, a conclusão de que por isso mesmo nossa vida é possibilidade, sentido.

A realidade é que passamos constantemente do sentimento de absurdidade ao sentimento de propósito e sentido, e esta oscilação mesma não pode ser compreendida como absurdidade, sob pena de não podermos mais conceber a idéia de sentido nem mesmo na acepção platônica de uma aspiração extramundana.

“Sentido” e “absurdo”, tomados como expressões de conceitos abstratos universais, são termos contraditórios. Mas, quando aplicados a qualquer conteúdo concreto — mesmo à expressão da totalidade da nossa experiência vivida —, tornam-se apenas contrários, o que permite dialetizá-los como o faz Simone. Apenas, a conclusão desta dialética — conclusão que Simone rejeita, com plena inconseqüência — é que toda coisa tem dois lados, um sensato, outro absurdo, e que a olhamos por um ou por outro conforme uma inclinação passageira nossa. Não havendo um conceito-síntese entre sensato e absurdo, então somos levados à seguinte alternativa: se procuramos resolver a questão pelo lado ontológico e universal, os conceitos voltam a ser contraditórios e, neste caso, somos obrigados a resolver o absurdo no sensato ou a proclamar a absurdidade da questão mesma; se, porém, pretendemos permanecer no plano da expressão de sentimentos pessoais, podemos, conforme a inclinação do momento, proclamar que tudo é absurdo, mas estaremos apenas universalizando arbitrariamente uma impressão que será fatalmente passageira e será seguida por sua contrária.

O Sentido, enfim, é uma necessidade absoluta, e a existência mesma do sentimento de absurdidade é a sua maior prova.

Só a contradição fornece a prova de que não somos tudo. A contradição é nossa miséria, e o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade. Pois nossa miséria, não a fabricamos. Ela é verdadeira. Eis por que é preciso adorá-la. Todo o resto é imaginário6.

Se a primeira dessas sentenças parecia resolver a questão colocada no parágrafo anterior, a segunda põe tudo a perder novamente ao absolutizar a impressão passageira de absurdidade, impressão que, como vimos, só é tornada possível pela sua alternância com a impressão contrária, e que, enfim, somente nesta se resolve. Se o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade, de toda a realidade, e se tudo o mais é imaginário, então também Deus é imaginário.

A impossibilidade é a porta para o sobrenatural. Não se pode senão bater. É um outro quem abre7.

Só há dois tipos de impossibilidade: impossibilidade lógica, ou absoluta; e impossibilidade física, ou relativa. O sobrenatural não viola os limites da impossibilidade absoluta, os limites da identidade, pois é ele mesmo a Identidade, isto é, a absoluta possibilidade (é neste sentido que Sto. Tomás diz que Deus não pode revogar a lógica de Aristóteles). Quanto à impossibilidade física, só a conhecemos de maneiras parciais e transitórias, simbólicas, na verdade; não podemos experimentá-la extensivamente e só a vivenciamos em pura imaginação.

Logo, só há duas maneiras de atingir o limite da impossibilidade: ou nos chocamos realmente contra umaimpossibilidade particular e contingente (o paralítico, por exemplo, que tenta mover-se), ou concebemos imaginativamente uma impossibilidade geral e universal. Em qual dessas duas portas é preciso bater? Se é nesta, então Deus é a solução imaginária a um problema imaginário. Se é naquela, então o fato de alguém abrir a porta é realmente um milagre, a dissolução sobrenatural de uma impossibilidade física determinada. Se é assim, somente um milagre no sentido físico do termo — uma superação de limites físicos naturalmente intransponíveis — pode nos abrir a porta que leva a Deus; e, se assim é, o chamado “milagre da fé” é apenas uma metáfora, um modo de dizer, pois é a superação subjetiva de um obstáculo imaginário e não há milagre real em mudar simplesmente de idéia. De outro lado, Cristo condena com veemência aquele que exige milagres. Logo, não é possível, ou pelo menos é fundamentalmente anticristão, que o confronto com a impossibilidade seja a única porta para o sobrenatural.

É preciso tocar a impossibilidade para sair do sonho. Não há impossibilidade em sonho8.

Novamente, a primeira sentença enuncia uma verdade psicológica de experiência corrente, para, na segunda, saltarmos para uma generalização falsa.

É verdade que o senso da impossibilidade falta em certas pessoas que vivem em sonho, e que a admissão da impossibilidade pode libertá-las do sonho.

Mas há sonhos que expressam diretamente nosso sentimento de impossibilidade, como por exemplo quando uma distância se multiplica à medida que corremos para alcançá-la. Não se trata aí de mera impotência ocasional, mas de uma viva experiência de impossibilidade física.

O que falta no sonho não é o sentimento de impossibilidade, mas a avaliação das gradações e transições entre o possível e o impossível; é o senso da probabilidade, ou plausibilidade, ou razoabilidade.

Inversa e complementarmente, o sentimento de impossibilidade geral, quando vivido em vigília, é apenas um sonho, um sonho mau do qual procuramos sair mediante o apelo a um sonho bom chamado Deus. Novamente, a solução imaginária de um problema imaginário. Os depressivos vivem num perpétuo sonho de impossibilidade, e nem por isto são mais realistas do que os maníacos e os visionários.

Extinguir o senso da plausibilidade para levar o homem ao desespero e em seguida oferecer-lhe a saída de emergência denominada “fé” pode ser um expediente retórico piedoso, mas filosoficamente é inadmissível; ademais, é um artifício gurdjieffiano: chegar à verdade através da mentira, como se isto fosse possível, como se a verdade assim encontrada não estivesse viciada pela origem espúria. Os pregadores católicos abusam desse expediente, sem notar que corrompem a fé. Bilinguis maledictus, afinal de contas. Da minha parte, prefiro o mandamento corânico: Chegarás à verdade através da verdade.

“Nosso Pai, que está nos céus.” Há nisto uma espécie de humor. É vosso pai, mas tentai um pouco ir buscá-lo lá em cima! Somos tão exatamente incapazes de decolar quanto um verme da terra. E como, da Sua parte, viria Ele até nós sem descer? Não há maneira nenhuma de representar uma relação entre Deus e o homem que não seja tão ininteligível quanto a Encarnação. A Encarnação faz esplender essa ininteligibilidade. Ela é a maneira mais concreta de pensar esse descenso impossível.9

É uma ofensa à dignidade da inteligência humana que um pensador cristão nos peça para acreditar na Encarnação como fato, ao mesmo tempo que nos proíbe de aceitá-la como possibilidade. O real é, por definição, possível. A Encarnação é possível, uma vez que aconteceu. Mas, mesmo que não tivesse acontecido, não teria cabimento negar sua possibilidade teórica, e isto por duas razões esmagadoras: primeiro, ela é exigida pelo conceito mesmo de Onipotência; segundo, ela é anunciada pelo Antigo Testamento.

A Encarnação compreendida — ou mal compreendida — como fato impossível é a negação do mundo criado, e não sua perfeição. Se jogamos o fato da Encarnação contra o senso da possibilidade lógica, destruímos, no ato, toda metafísica cristã e, de quebra, toda semente de uma cosmologia cristã. Da noção verdadeira de um Deus supracósmico, passamos à de um Deus anticósmico, um monstro absurdo a espumar de ódio contra a obra de suas mãos e a proclamar-se tanto mais infalível quanto mais peca contra si mesmo. Há uma semente de diabolismo num supracosmismo levado às últimas conseqüências — e a Encarnação é ela mesma a resposta cabal de Deus a toda revolta anticósmica10.

A Encarnação não somente é possível, como é possível eminenter: ela é a condição de possibilidade mesma da existência cósmica. Se Deus não pode ser homem, simplesmente não pode haver homens. A analogia com a mais vulgar experiência humana basta para ilustrá-lo: que é que impede um autor de fazer-se personagem entre os personagens que cria?

“En la tarde del 5 de enero, de pie en el umbral del café de Guido e Junín, Bruno vio venir a Sabato…”11

O sentimento de implausibilidade que o ateu experimenta ante a idéia de Encarnação é tomado por Simone como expressão plena e final da concepção humana do cosmos, numa ampliação universalizante de impressões passageiras, tão típica aliás do modus eloquendi francês em geral. E de um simples modo oblíquo de falar tiram-se, muito francesamente, as mais portentosas conseqüências filosóficas…

Não vejo o menor sentido em confundir o sublime com o impossível, a não ser a título de figura de linguagem. Imagens do sublime que para o ateu representam impossibilidades são, aliás, freqüentes na simbólica religiosa em geral. Não é menos implausível para o ateu no meio cristão a idéia de Encarnação — no seu duplo aspecto de parto virginal e de nascimento do homem-deus — do que, no mundo islâmico, a possibilidade de um analfabeto escrever o mais belo dos livros e de este livro ter-lhe sido ditado por Deus. Mas, para quem tem um pingo de senso metafísico, nenhuma dessas coisas tem de ser impossível para ser sublime, nem tem de ser absurda para ser verdadeira.

Roma, é o grande animal ateu, materialista, que não adora senão a si. Israel, é o grande animal religioso. Nem um nem o outro são amáveis. O grande animal é sempre repugnante.12

O Ocidente cristão é o grande animal que se faz de crucificado e tomba com todo o peso da sua cruz salvadora sobre os ombros de povos que não pediram para ser salvos de nada exceto do invasor cristão.

O cristianismo sempre culpa as demais religiões pelos males das civilizações não-cristãs, mas joga seus próprios males na conta dos resíduos pré-cristãos ou anticristãos da civilização do Ocidente. Se os muçulmanos cortam as mãos dos ladrões, é porque sua religião é bárbara e cruel. Se Afonso de Albuquerque corta orelhas e narizes de persas inofensivos, é porque não é suficientemente cristão ainda que seja o braço armado da Igreja. A Inquisição é um desvio acidental, mas a queima da biblioteca de Alexandria manifesta a essência do Islam.

É sempre assim no pensamento coletivista, sempre falso ainda quando fundado em verdades reveladas. Cito meu próprio Diário:

“Princípios auto-evidentes para o estudo comparativo das religiões:

“1. Comparar ideais com ideais, fatos com fatos. O sectário, em vez disto, compara os ideais de sua religião com os fatos históricos da outra, o que vale dizer: a essência de minha religião está nas suas intenções elevadas, e os erros cometidos em seu nome são acidentes humanos que não a comprometem; a essência da outra religião está nos erros cometidos em seu nome, e seus elevados ideais são apenas um disfarce ideológico.

“É assim que as violências cometidas pela Igreja são absolvidas como acidentes irrelevantes, e as praticadas pelos muçulmanos tornaram-se expressão direta da natureza sanguinária da fé islâmica. Do mesmo modo, S. H. Nasr, em Ideals and Realities of Islam, não compara o mundo tradicional islâmico à civilização moderna, mas os sublimes ideais do primeiro à deprimente realidade histórica da segunda.

“2. Pelos frutos os conhecereis. Sociologicamente, pelo menos, importa menos o dogma explicito e genérico do que sua interpretação prática pelos grupos que, na História, representam essa religião em cada fase. Por exemplo, no início do século XIX, um homem podia ser aceito como bom católico sem que demonstrasse qualquer amor ao próximo; mas não o seria sem demonstrar, ao menos em palavras, fidelidade à monarquia e ódio à Revolução. O catolicismo dessa fase consiste em reacionarismo principalmente. Do mesmo modo, pode-se ser um bom “irmão muçulmano” sem aceitar — a exemplo do Profeta — os cristãos como irmãos de crença; mas não se pode sê-lo sem ódio ao “grande Satã” norte-americano.”13

Para respeitar por exemplo as pátrias estrangeiras, é preciso fazer da própria pátria, não um ídolo, mas uma escala em direção a Deus.14

O mesmo princípio vale para as religiões e civilizações: se não respeito as religiões estrangeiras tanto quanto a minha, é porque faço da minha um ídolo em vez de uma escala em direção a Deus15. A religião torna-se um fim em si, com seus ritos, suas pompas, sua retórica mística adornada de paradoxos rutilantes, e já não aceita Deus quando entra pela porta da inteligência metafísica, sem licença eclesiástica, ou simplesmente pela porta das outras religiões. Mas “aquilo que fizerdes ao menor destes, a Mim o fizestes”.

Tudo o que é apreendido pelas faculdades naturais é hipotético. Só o amor sobrenatural põe.16

Logo, o sentimento de absurdidade é meramente hipotético, e o amor sobrenatural o resolve pela restauração do Sentido. Mas trata-se aí do amor sobrenatural que Deus tem por nós, e não do que nós temos por ele, e muito menos daquele que toma a forma específica da fé cristã — pois Deus deu o entendimento intuitivo do Sentido a todos os homens, pela ação do Espírito Santo, e não só aos cristãos. Do contrário, todos, menos os cristãos, naufragariam na absurdidade até a chegada do primeiro pregador cristão.

O amor aos paradoxos é uma forma de idolatria bem querida dos místicos. Em nome do amor a Deus, eles se persuadem de não entender aquilo que entendem perfeitamente bem, para poderem deleitar-se no sentimento de absurdo e desfrutarem de um alívio factício adornado do prestígio de um milagre da fé.

Não é o erro que constitui o pecado mortal, mas o grau de luz que está na alma quando o erro, qualquer que seja, é cometido.17

Sim, porém mais perigosa que o pecado mortal não será a tentação de livrar-nos da luz para evitar que o pecado se torne mortal? Da minha parte, prefiro um milhão de pecados mortais ao pecado contra o Espírito; em caso de não poder sem grave dilaceração interior vencer uma tentação vulgar, prefiro pecar conscientemente, e arrepender-me conscientemente, do que reprimir a consciência moral para poder pecar com inocência — aquele tipo de inocência perversa que, como bem viu Igor Caruso, está na origem das neuroses e psicoses (índices, neste sentido, de ruptura com o Espírito). E se a humanidade, por dois milênios, ouviu graves advertências contra o pecado mortal, sem receber uma quota nem de longe equivalente de ensinamentos quanto ao pecado contra o Espírito, não será quase inevitável que a rejeição da luz acabe prevalecendo?

Tome-se, por exemplo, o falso testemunho. Não será melhor perante Deus uma pessoa mentir conscientemente, perfidamente, maquiavelicamente para prejudicar a um inimigo do que, para o mesmo fim, corromper e obscurecer a própria consciência até o ponto de persuadir-se de que diz a verdade? A neurose resultante — a atmosfera de fraude e auto-engano que pervade então toda a personalidade — é apenas o índice superficial de um profundo ódio ao Espírito.

Talvez Simone vivesse numa época em que os pecados mortais vulgares — roubo, adultério — ainda fossem mais generalizados do que a rejeição do Espírito, hoje o mandamento número um da vida em sociedade.

O irracionalismo arrebatado de alguns místicos cristãos (mas também muçulmanos, segundo observei) acaba por nos abrir a via abissal de uma mística sem sabedoria.

 

9 jan. 98

 

NOTAS

  1. Leszek Kolakowski, Las Principales Corrientes del Marxismo. Su Nacimiento, Desarrollo y Disolución, trad. Jorge Vigil, Madrid, Alianza, 1976-78, vol. I, pp. 19-87.
  2. La Pésanteur et la Grâce, avec une introduction par Gustave Thibon, Paris, Plon, 1948, p. 111. — Todas as citações remetidas apenas a um número de página, sem indicação de título, são extraídas deste livro. Todas as citações em itálicoe em parágrafo estreito são de Simone Weil, deste livro ou de outro, que se indicará na ocasião.
  3. , ibid.
  4. Se, como diz Sto. Tomás, “o amor é o desejo de eternidade do ser amado”, então não se trata de extinção mútua, e sim de mútua salvação. Talvez seja mais fácil compreender isto desde o ponto de vista islâmico, onde o ato sexual aparece como um sacramento e não como o mero exercício de um direito outorgado por um sacramento prévio (tanto que no Islam não existe noção de “casamento religioso”). Esta concepção não é aliás estranha de todo ao cristianismo, onde os nubentes, e não o sacerdote, são os oficiantes do sacramento do matrimônio. A rigor, qualquer par de homem e mulher que, no intuito de união indissolúvel, se entregue ao ato do amor deve ser considerado casado, segundo a interpretação mais profunda do dogma. Apenas, a contingência histórica desviou o foco da questão, fazendo com que a idéia de matrimônio se associasse cada vez mais a um ritual público e cada vez menos à efetiva união carnal — com o que se perdeu todo senso primordial da relação homem-mulher e o casamento se tornou uma espécie de salvo-conduto para a prática do mal menor.
  5. , p. 112.
  6. , ibid.
  7. , ibid.
  8. , ibid.
  9. , pp. 112-113.
  10. O desaparecimento das ciências cosmológicas — alquimia, astrologia — do panorama da civilização cristã foi um dos efeitos mais devastadores do supracosmismo, que parece ter-se entronizado na mentalidade católica após o concílio de Trento e os abusos da Inquisição. Esse desaparecimento, por sua vez, ocasionou a proliferação de doutrinas cosmológicas materialistas que vêm preencher a seu modo o hiato aberto pela omissão católica e terminam por expulsar da alma humana toda concepção de Deus (v., a respeito, o esplêndido livro de Seyyed Hossein Nasr, Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man, London, Allen & Unwin, 1976, trad. brasileira de Raul Bezerra Pedreira Filho, O Homem e a Natureza, Rio, Zahar, 1977). A Igreja tem no seu passivo o pecado de haver colocado entre o homem e Deus, em vez do cosmos, um abismo, um nada devorador; e ainda agrava essa culpa ao buscar um “diálogo” com as doutrinas materialistas, em vez de restaurar simplesmente a cosmologia cristã. E é evidente que esta cosmologia tem de tomar como fundamento absoluto e apodíctico a possibilidade da Encarnação. É verdade que o pressuposto contrário, o da impossibilidade, tem um efeito retórico mais contundente; mas vale a pena destruir toda a civilização cristã para depois buscar em figuras de retórica um abrigo contra o avanço da civilização anticristã?
  11. Ernesto Sabato, Abbadon el Exterminador, Buenos Aires, Sudamericana, 7ª ed., 1977. p. 11.
  12. P. 185.
  13. Páginas de um Diário Filosófico (inédito). Entrada de 10 de dezembro de 1991.
  14. P. 168.
  15. E poucos povos caíram na adoração da religião como fim em si como caíram os cristãos, a ponto de sobrepor a letra do dogma às evidências mais óbvias, como por exemplo faz Simone ao pedir que aceitemos a Encarnação como fato ao mesmo tempo que a negamos como possibilidade.
  16. P. 38.
  17. P. 142.

 

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