Leituras

Marxismo, Direito e Sociedade – Parte II

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves – Parte II

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003.

OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. Agradecendo muito a Thiago Magalhães e a seus colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar, que o meu interlocutor é bem menos marxista do que me disseram, o que de certo modo facilita o trabalho, porque a análise do marxismo é sempre um problema quase impossível de resolver, pela multilateralidade dos seus aspectos. Vocês vejam que o marxismo é uma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma crítica cultural, é uma organização política da militância: ele é tudo isso ao mesmo tempo. Ora, vocês não encontrarão em todo o mundo, em toda a história humana, nenhum fenômeno parecido: não existe nenhum outro fenômeno que abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmo tempo. Isso quer dizer que o marxismo nos coloca desde logo o problema de que não sabemos a que gênero de fenômenos ele pertence.

Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critério aristotélico do gênero próximo e da diferença específica, nós já nos esborrachamos no primeiro degrau da escada por não haver um gênero próximo. Isso significa que toda a tentativa de discussão do marxismo imita aquele célebre caso dos cegos com o elefante, em que um pega a perna e diz que o elefante é um poste, outro pega a tromba é diz que é uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma folha de papel, e assim por diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno econômico – o pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia, porque a crítica liberal da economia marxista é tão arrasadora que este é o campo mais fácil para discussão –, quando pensam que estão ganhando a discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da crítica moral do capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberal fez está perdido. Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo do marxismo, também quando estamos quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete a teologia da libertação, dizendo que é mais cristão do que nós. Então, realmente estamos lidando com um ente proteiforme e indefinido. É evidente que a análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas que, sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas ao marxismo que se fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja inútil, mas pega somente detalhes e partes às vezes insignificantes do problema.

Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escala de abrangência e de abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, o que é o marxismo. Então, abreviando quinze ou mais anos de estudo que me levam a esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo pelo seu gênero próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gênero próximo: o marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia, não é um partido político, não é nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura , no sentido antropológico do termo. Uma cultura significa um universo inteiro, um complexo inteiro de crenças, símbolos, discursos, reações humanas, sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas de ação e, sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa. Para toda cultura existente, o desafio número um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o marxismo, ao longo de sua história, desenvolveu uma infinidade de meios de autopreservação cujo funcionamento, inclusive material, dificilmente é objeto de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho que o marxismo, que professa tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela base econômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressão de que as idéias marxistas, exatamente como as idéias do antigo idealismo, se propagam no ar sem nenhuma ajuda humana e sem nenhuma sustentação econômica.

Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era um jovem militante do Partido Comunista e, à medida que fui descobrindo os dados a respeito, eu vi que o próprio marxismo era um fenômeno econômico dos mais interessantes. Quando digo que o marxismo é um fenômeno sui generis , que nunca houve um complexo cultural assim tão vasto, há um outro ponto no qual o marxismo também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a entidade chamada NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes –, este era um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmente conseguimos imaginar. A KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinha quinhentos mil funcionários, sem contar toda a militância comunista espalhada pelo mundo (o que era um serviço auxiliar também obrigatório), com o que se pode somar mais dez ou vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais vinte milhões de auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos os serviços secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não tiveram um serviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda Guerra – os Estados Unidos desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação da KGB na intelectualidade européia começa já na década de 20, havendo ali um festival de compra de consciências como nunca houve na história humana. A respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Double lives (“Vidas Duplas”), que trata exatamente da apropriação da intelectualidade européia pela KGB, através não só de mecanismos normais de persuasão mas realmente da compra de consciências, de chantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito também deste período há um outro livro que eu lhes recomendo: chama-se Hollywood Party , de Kenneth Billingsley, sobre o Partido Comunista no cinema americano. Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se tornou famosa no mundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pela Câmara dos Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas nenhum artista de Hollywood jamais compareceu perante a comissão McCarthy e sim perante uma outra comissão totalmente diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista negra no cinema americano desde quinze anos antes, que se compunha das pessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem aparecido nos últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.

Eu digo isso para vocês terem uma idéia do sustentáculo econômico e organizacional da difusão das idéias marxistas. Nenhuma outra no mundo jamais teve isto a seu serviço. Notem bem que a eficácia desse mecanismo ainda nos atinge no Brasil. Onde quer que haja cinco ou seis professores marxistas – não no sentido do prof. Alaor Caffé, pelo amor de Deus, porque já vi que ele é um homem sensato –, mas no sentido de um militante efetivamente comprometido, há uma equipe de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que não interesse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame-se Partido Comunista, Worker’s Party, como quiser). Eu vou lhes dar um exemplo de como se faz isso: este livro chama-se Dicionário Crítico do Pensamento da Direita . É uma obra feita por 140 professores universitários brasileiros; portanto, é representativa de uma classe. Esses 140 professores trabalharam durante seis anos, com verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para nos dizer o que é o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do Partido Comunista, eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudar também o pensamento de direita e tenho a pretensão de conhecê-lo. Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui: nem Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz. Em suma, todos os pensadores que fizeram a cabeça do movimento conservador nos Estados Unidos e na Inglaterra estão totalmente ausentes. O que representa o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels, Julius Streicher (este era um maluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi expulso do Partido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então, você compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali um bloqueio total do que quer que lhe possa dar uma idéia do adversário que não combine com a idéia precisa que este grupo de militantes quer impor às pessoas. Esse procedimento não é exceção. Após a abertura dos arquivos de Moscou, nós temos uma documentação enorme sobre o uso desses métodos no mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma dificuldade para estudar o marxismo, porque entre seus mecanismos de defesa existe também o mecanismo de escamotear sua própria história e a história do adversário. Ressalto: nunca houve uma organização de tamanho comparável, dedicada a fazer isso no sentido extramarxista ou antimarxista. Todos os movimentos, até anticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curta duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si. Para vocês terem uma idéia, o sujeito pode ser anticomunista porque é judeu ortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista: vocês não vão querer que o anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se dêem as mãos. Por causa disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresenta de maneira tão disseminada e tão impossível de se localizar que todo o debate neste sentido falha logo de início.

Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que está infinitamente acima de minha capacidade, mas creio que um primeiro passo é fazer com que essa figura nebulosa e proteiforme do marxismo seja substituída por uma figura mais reconhecível. Daí a minha definição do marxismo como uma cultura. Sendo uma cultura, a sua própria preservação tem prioridade absoluta e, em nome dessa prioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler aqui um trechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que ele relata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoria jurídica do marxismo. Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismo não tinha teoria jurídica alguma, e Negri dizia que tinha. Diz Antonio Negri:

“O problema foi que o objeto da discussão não era o mesmo, nem para os dois participantes, nem para os espectadores, nem para os partidários dos dois lados. Para Norberto Bobbio, uma teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra do próprio Marx, e ele não tinha encontrado nada disso. Para o autor marxista radical (isto é, ele mesmo, Antonio Negri), no entanto, uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das instituições jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma prática que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e à expressão do seu poder”.

O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que, embora não haja realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos de Marx – existem apenas observações mais ou menos esporádicas e deduções que os discípulos podem tirar delas –, existe uma crítica marxista que está de certo modo embutida na própria prática revolucionária e na afirmação do seu poder. Ou seja, se queremos saber qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx: é necessário observar a história do movimento comunista, ver como ele se desenvolveu e ler a crítica jurídica que está embutida ali. Está compreendido? Muito bem, só que em seguida ele diz: “ Se havia algo em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real (Sabem o que é socialismo real? É o socialismo cuja existência foi documentada na União Soviética, na China, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. A redução do marxismo à história do socialismo real não faz nenhum sentido ”. Ora, mas o que é o socialismo real? Ele não foi precisamente a cristalização histórica do resultado da tal “prática da criação do sujeito revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria marxista do Estado não está nos escritos de Marx e também não está no resultado da prática revolucionária, onde diabos ela está? Resposta: ela está na prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É esta prática que é a legítima, as anteriores não. Isto é uma constante na história do movimento socialista.

Tão logo enunciados os princípios do marxismo no Manifesto Comunista de 1848, a primeira coisa que os comunistas fizeram foi colocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo capítulo da história do marxismo após a sua fundação, de modo que, aos revisionistas (Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marx estabelecia entre marxismo e violência era ilegítima. Não nos façamos ilusões: Karl Marx sempre disse que a revolução somente se faria por meio da violência, ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar o marxismo por meio da educação ou qualquer outro meio pacífico e inclusive dizia, lamentando-se, que “para implantar o socialismo no mundo nós temos de destruir no caminho uns quantos povos inferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à violência não fazia parte da essência do marxismo, mas era uma espécie de excrescência devida a alguma perturbação na cabeça do próprio Marx. No terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin, acreditando-se que é absolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência; e, através do uso da violência, constitui-se a duras penas, com sacrifício de milhões de militantes, sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, o Estado Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz a geração seguinte? “Isto não é representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”.

Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal, quando aparecerá o verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já: nunca. Porque o verdadeiro marxismo não existe como nenhuma formulação explícita, que possa ser discutida racionalmente. O marxismo só existe como uma cultura, na qual a formulação doutrinal é apenas um elemento provisório e tático, que pode ser trocado quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somente mudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome do marxismo já não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que ele tem na cabeça –, mas consiga também fazer até o milagre oposto: ele consegue não apenas limpar a memória de seus próprios crimes, mas consegue trazer para si os méritos do adversário. Vou lhes dar um exemplo de como se faz isso, exemplo que tirei do próprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da criação do sujeito revolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “ isso faz parte da história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o Levante de Paris de 1789 até a Queda do Muro de Berlim ”. A Queda do Muro de Berlim integra-se na sucessão das lutas para a criação do sujeito revolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer que o único marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. O representante de qualquer religião, ideologia, partido político ou clube esportivo que se permita uma tamanha elasticidade será evidentemente condenado como charlatão ou internado como louco. Mas dentro do marxismo isto vale. Mais ainda, digo para vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidade consciente. Isto é possível dentro do marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria que se tenha de defender mediante uma discussão racional.

Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma cultura, todos os meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade não devem entrar na linha de conta, porque veracidade, ciência, cientificidade, moralidade e racionalidade são apenas expressões parciais da cultura, de maneira que fazer cobranças à cultura em nome delas parece uma insuportável revolta das partes contra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a cultura está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria. Sendo o marxismo uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer não podem ser impugnadas no campo doutrinal, evidentemente. Porque, ou nós as impugnaremos no campo moral e, a cultura estando acima da moral, rejeitará nossa argumentação como irrelevante, ou nós argumentaremos em nome da ciência, da racionalidade etc., e a cultura como um todo jamais poderá se colocar sob a fiscalização da moral e dos bons costumes. É tão absurdo você discutir com um marxista sobre a sua cultura quanto seria você chegar numa tribo de índios do Alto Xingu e dizer a eles que algum de seus costumes é imoral. Ele não entenderá o que você diz, porque a moral para ele são exatamente os costumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele possa apelar. Nós temos idéia de uma moral supracultural porque vivemos em enormes blocos civilizacionais multiculturais, recebemos o impacto de muitas culturas e podemos compará-las entre si. Isto, por um lado, nos induz ao relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão de abstração e abrangência maiores, mais científicos.

Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, e qualquer produto externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhado e modificado no seu sentido, de modo que se torne inofensivo. Por exemplo, o pensamento conservador todo será substituído por pensadores de direita de baixíssimo nível – de preferência psicopatas nazistas que se denunciem a si mesmos na primeira palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes, procede-se de maneira menos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto nível, mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácil vencê-los saindo de seu quadro categorial, puxando a discussão para um outro quadro. Por exemplo, a famosa discussão com Kelsen: Kelsen está apenas tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Se existe, dentro de uma sociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religião etc.), nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste cada um desses elementos? Se dissermos que cada um dos elementos não é nada, que só existe a mistura, será então a mistura de vários nadas que miraculosamente dá em alguma coisa. Na época de Kelsen, houve vários esforços em várias ciências totalmente distintas para conseguir definir seu campo de maneira, como eles diziam, “pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros, houve o esforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguém entenderá uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentro deste movimento. Como o universo categorial conceitual de Kelsen é bastante limitado (e eu, particularmente, também acho que Kelsen está errado ao definir o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil, numa discussão com ele, apelar para conceitos sociológicos e históricos que estão infinitamente fora do quadro de referência dele e fazer de conta que o derrubou, quando simplesmente não se entrou no assunto. E assim se procede com praticamente todo mundo.

Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamente sobre o marxismo, muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo, que eu acredito piamente que não existem. Mas vamos examinar muito rapidamente alguns conceitos marxistas.

Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que a realidade social dos homens condiciona a sua consciência; nas Teses sobre Feuerbach , ele vai um pouco mais além e diz “determina”. Isto quer dizer que você tem uma posição na sociedade que é definida pelo seu papel no sistema de produção e você tem um conjunto de idéias que é determinado por esta posição. Quanto é determinado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz é que, em última instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entre posição social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como diz Marx, ou posição social é uma coisa e ideologia é outra completamente diferente. Se houvesse uma conexão efetiva, então o burguês tem de pensar como burguês, o proletário como proletário, podendo haver, é claro, exceções. Mas qual seria a possibilidade de que justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não fosse um proletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E o quarto também não? E de que praticamente toda a liderança do movimento comunista, ao longo dos tempos e incluindo Antonio Negri, nunca fosse de proletários? Eles podem dizer que são burgueses esclarecidos e que aderiram. Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm. Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sua livre escolha, e a famosa conexão não existe.

Outro item (eu poderia dar uns cinqüenta, mas vou usar um que foi lembrado aqui pelo prof. Alaor) é o de que cada etapa histórica é marcada por um sistema de propriedade, e que dentro deste sistema existem forças de produção que crescem até um certo ponto e derrubam este sistema de propriedade – o prof. Alaor deu como exemplo o feudalismo. Então, o feudalismo tem lá um sistema de propriedade; quando a produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e o feudalismo cai. Perguntem-me quando isso aconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu muito antes de que houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e os meios de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição real ou monárquica. O feudalismo foi derrubado quando o rei, que era um primus inter pares , decide derrubar os seus pares e tornar-se o primus “sem pares”. Para isso, no caso da França, constitui-se, pela primeira vez, uma imensa burocracia estatal, com a qual nem os senhores feudais nem muito menos os burgueses puderam competir de maneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que na Revolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são os capitalistas, não? Façam a lista dos líderes da Revolução Francesa e vejam quantos capitalistas havia ali. Resposta: um. Os outros eram todos padres, aristocratas frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram burgueses ou capitalistas pessoalmente, eles podiam ter algum contato com entidades de capitalistas que lhes diziam quais eram seus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas nunca houve este contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução Francesa era a ideologia dos capitalistas ou da burguesia, curiosamente os burgueses se esquivaram de defendê-la: ela foi defendida por pessoas que não tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum burguês vindo-lhes pedir que fizessem algo.

Isso é para lhes dar uma idéia de até que ponto a teoria marxista da história é pura mitologia e charlatanismo em cada um dos seus itens. É claro que, se em meia hora o prof. Alaor não pode expor a parte dele (a qual vocês já estão acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar toda essa novidade. Dêem-me alguns anos e eu provo isto com todos os detalhes.

MEDIADOR : Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaor Caffé Alves.

Parte III 

Marxismo, Direito e Sociedade – Parte I

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves – Parte I

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003.

Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra.

Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.

MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e social de nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na sociedade? E no seu entendimento, quais as conseqüências de se pensar o Direito desta forma? Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof. Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a respeito do pensamento jurídico, e especialmente do pensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologia singular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no sentido tradicional do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista, desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas históricas, problemas graves, inclusive de situações relacionadas com frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso nos dá um grau de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas importantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco – alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a perspectiva marxista, que é uma perspectiva que no século XX teve um domínio muito grande, especialmente na ordem política, embora não daquela forma que desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas no esquema político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na conclusão do ideal desse pensador que conhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Na verdade, Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito singular no plano do pensamento teórico da economia, estabelecendo seus princípios, enfim, aquilo que ele julgava adequado para explicar a sociedade em que ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não valem mais, em função da historicidade dessas mesmas expli cações. Então, é claro, temos de dar o devido valor e entender que isso não significa absolutamente compreender Marx sob o ponto de vista dogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos oferecer para entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no nosso caso, o problema jurídico.

Para colocar a questão muito rapidamente, muito estrategicamente, no ponto de possível discussão, nós temos de levar em conta as características do Direito exatamente dentro da perspectiva e da posição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensão estrutural social; precisamos entender o que significa a chamada estrutura social, se ela comporta ou não previsibilidade, se admite ou não as possibilidades de um conhecimento razoável do ser humano, a ponto de prever as condições objetivas de sua vida social. Nós encontramos várias ciências sob o ângulo da previsão, como a sociologia, como a própria economia, mas a questão é saber se a história pode ser prevista. Essa é uma questão importante, porque o próprio homem é considerado como ser produto da história e de sua socialidade. Se o ser humano é um produto social, a par da situação individual em que ele se apresenta também como ser biológico – ele também tem a sua individualidade singular, biológica, psicológica –, aqui também se indaga sobre a forma social que toma essa expressão biológica e psicológica. Até que ponto a socialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, as crenças? Em que sentido isso ocorre?

O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômeno social e, sendo um fenômeno social, tem de ser estudado desde de certos critérios que permitem caracterizar uma certa regularidade no Direito. É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um saber científico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um saber apenas prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ou se há apenas um conjunto de propostas gerais que não têm uma fundamentação científica adequada para verificação de sua validade, de sua verdade. Tudo isso é um problema complicado, pois se trata da metodologia do saber jurídico, focada na perspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre esse assunto. Por exemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico jurista, que sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande pensador que, atendendo às premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela metodologia marxista, pela visão marxista do mundo, acabou dando-nos uma visão interessante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo altera seu ponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É claro que outros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofos juristas como Ceromi [?], grande pensador italiano, ligado também à perspectiva marxista, e também Atienza, um grande pensador ligado às questões da ordem do método marxista do Direito. Também temos o namoro feito por Norberto Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal, mas de uma forma um tanto diferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX e mesmo do século XX.

Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte: como é que vamos tratar o Direito dentro de uma perspectiva não positivista? Uma delas é a marxista. O conceito de direito no sentido positivista, como vocês sabem, decorre exatamente de uma posição e definição da lei como sendo aquela que deve definir as condições e as específicas diretrizes jurídicas de uma sociedade. A sociedade deve ser produzida do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grande problema é saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há, claro, explicações, inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, que são muito interessantes – mas não vamos perder tempo agora em defini-los, porque é muito complicado e precisaríamos de mais tempo –, explicações estas que não têm normalmente, por definição, a produção do espírito humano senão mediante a confissão de reflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal do Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectiva não-materialista corresponde ao fato de que há um espírito, espírito este que não significa o de cada um de nós, mas o conjunto dos espíritos, que na verdade são as ações culturais dos homens, particularmente, que formam o espírito que em última instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale dizer, o espírito na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a busca da liberdade produz praticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressão desse mesmo espírito. Essa visão é extremamente criticada pelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por base uma estrutura social calcada na visão da produção da vida social, na produção da vida material. Se não houver a idéia da produção da vida material da sociedade, nós não temos a idéia mais clara do próprio espírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada à materialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, como não caberia existir a matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais a matéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidade dos físicos gregos clássicos, a busca de um “ em si ”, de uma substância material no mundo. Para Karl Marx, a matéria é postulada em função da produção da vida social humana. Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade, de certo modo; há uma relação dialética entre o processo de pelo qual os homens agem no mundo e transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo, os homens, progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. É isso o que acontece.

Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade, exatamente o oposto da visão positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, o caso de Kelsen, que trabalha uma visão fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muito abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente norma e é uma estrutura de sentido. A norma como estrutura de sentido não será estudada do ponto de vista de sua gênese e nem de seus fins, porque gênese e fins da norma são questões de outras ciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, se exprime pela norma abstrata, por um dever-ser postulado segundo uma estrutura de coação, que é definida pelo próprio Estado. Então, um dever-ser , para Kelsen, é fundamental, e ele separa fundamentalmente o dever-ser do ser. Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva marxista, porque o ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. Não é fácil compreender isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz diferença profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o dever-ser , isto é, ele é condição para o dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade deve existir necessariamente para que exista o Direito, para que exista o dever-ser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relação social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro tem por fundamento um outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele chama de norma fundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o ser é absolutamente separada, não existe uma comunhão entre uma e outra a não ser pela condição necessária – não a condição per quam , pela qual, mas a condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. É claro que não há Direito sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente ladino, profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada. O Direito como estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora tendo como causa a vontade humana, porque já não pode mais ter causa divina (desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essa postura de direito teologal, como também não há a idéia do direito natural, um direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser , em que o próprio ser é dever-ser. Como já não se admite isso, a única forma de se admitir o Direito é aquele imposto pelos homens. A forma de impô-lo implica uma relativização do Direito, e esta relativização do Direito imposto pelo homem (porque o homem é um ser circunstanciado, histórico, condicionado por situações singulares) evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do que ele faz, especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não pode aceitar senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que a positivação do Direito moderno é fundamental, porque é uma das formas pela qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da forma como se diz o Direito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito mediante formas escritas; por isso a codificação do sistema, porque antes não havia esta codificação tão expressiva, mas a partir do século XVII, a codificação se torna cada vez mais presente, e no século XIX é praticamente universalizada. O Direito é um direito escrito, e enquanto direito escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que tem de ser interpretado. Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se torna muito complexa, determina a necessidade de os homens registrarem o Direito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamente interpretado e aplicado adequadamente.

Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modo extrai as possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece-se Kelsen dos fundamentos sociais, das estruturas sociais; daí o problema de que no positivismo se faz uma separação entre Direito como norma positivada e justiça, moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos distintas. O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que o Direito é isto. É claro que esta visão é formalizada, portanto, uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visão universal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a norma jurídica, como jurídica que é, que dá a essencialidade à compreensão do Direito, é igual no sistema capitalista, socialista, comunista, feudal, clássico: a norma é sempre a norma, é sempre o dever-ser . É por isso que ele, então, essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco o caminho platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, a factualidade, as circunstâncias, isso passa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida do mundo, como que sombras da caverna. O que importa fundamentalmente para essencializar o Direito é a norma; a norma é uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, e não a vontade é a norma. Vejam a diferença entre a postura marxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada, mais ampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o sistema capitalista; fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na perspectiva teológica que como nós temos ainda em vários países do mundo que a adotam, mas os países mais avançados têm esta linha muito consagrada da positividade, portanto a linha da legalidade.

Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia da processualidade, que é uma idéia dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciação entre o processo e o produto. A idéia é normalmente separar o resultado do processo, então fica complicado porque ficamos apenas com o resultado. Em termos operacionais e práticos dá para usar o resultado muito bem de forma instrumental, e como dizia Habermas, a instrumentalidade racional permite que se manipule o resultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido e entendido cientificamente se não se atender para o processo pelo qual o resultado é resultado. Então, há uma processualidade no mundo e buscar o processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por si mesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é melhor para entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem de ter a expressão do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem sua negatividade; porque o homem não é o passado, ele supera esse passado. Uma visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade de que o homem supere o passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação. Ele se afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criança que foi, portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa, e isso existe no plano do Direito.

Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temos então de projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: a sociedade, como se dá? Em que termos a sociedade entra como processo? É um problema que eu sempre levo em conta: ela é uma produção puramente espiritual, é uma produção material, ou é material e espiritual ao mesmo tempo? Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não é apenas a história do espírito humano que define o homem; também não é uma materialidade pura e simplesmente, naquela concepção mecanicista e substancialista da matéria; mas é uma relação, uma dinâmica entre espiritualidade e materialidade. Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é o fundamental nisto? Os marxistas consideram que, em última instância, a dimensão material (naquele sentido dito por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção, ou seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é claro que tem história. Se examinarmos antropologicamente, vê-se que os homens não produziram sempre aquilo que produzem hoje; produziram de forma muito diferente, produziam outras coisas, em modos diferentes de produção. As formas sociais para produção são diferentes, as relações que os homens guardam entre si são diferentes nos diversos momentos históricos. Então, você vê que, efetivamente, existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico do Direito para saber até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste processo.

O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um exemplo bem específico para vocês entenderem o que eu quero dizer. No sistema feudal, as relações produtivas eram muito singelas; era uma economia mais natural, mais de subsistência; o valor de uso predominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda não corria muito; os feudos centralizavam o sistema econômico. Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício da força, porque a politicidade também tem em seu centro a possibilidade do exercício da força; isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A relação econômica era a produção feita pelos homens e a relação social destes homens para a produção. Mas a relação social se compunha, ao mesmo tempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder para transformar o mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão-de-obra e os mecanismos que existem para fazê-lo, mas existia também uma atuação política, uma força política para esse exercício. Então, sabe-se que numa época escravista, como a época feudal, as relações entre os homens para produzir não eram as mesmas das épocas modernas, da época que chamamos burguesa ou capitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque o exercício da força sobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico e o político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal maneira feridos em sua integridade, que o agente econômico era o mesmo agente político. O senhor feudal era ao mesmo tempo agente econômico, agente cultural e agente político: ele exercia a força, ele inclusive trazia a mão-de-obra à força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro elemento que é a ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de explorar os homens nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito própria que traduz uma forma política específica da época medieval. Quando entretanto – e aqui vem a tese marxista – há uma evolução desse processo produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a condição material da produção, vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visão tecnológica de certo modo, que foi muito discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia avança pelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seu trabalho, da sua atuação direta com o mundo, buscando novas formas de cultivar o mundo, inventando várias coisas como o moinho de vento, a roda dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, é claro que isto vai implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a se desenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (a produção) e os limites do sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor basicamente, e depois, na expansão, era muito complicado fazer com que a venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) se estendesse para todo conjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondo certas situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aí existe um conflito singular entre uma força produtiva típica singular feudal e a força nascente, que seria exatamente essa dimensão calcada na perspectiva de uma nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se, portanto, um período de crise em que forma e matéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí vem uma nova fase: o homem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era preciso distribuir a mercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, que ganhem recursos para que possam consumir a mercadoria do mercado. Mas como seria possível fazer isso se as relações eram tipicamente ou servis ou escravistas? Impossível, porque não se podia distribuir recursos; para isso, era preciso criar novas formas, como a forma da moeda (a monetarização da economia), o salário (o assalariato se inicia neste processo). É evidente que neste momento tudo passa a ser diferente: o sistema econômico não mais é garantido em função de uma relação de imposição sobre o trabalho, mas era preciso fazer com que o trabalho passasse a ter agora uma outra dimensão, a dimensão de liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com que a força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portanto vendável. Então, é o momento em que aparece a venda na força do trabalho, e esta venda forma o mercado, o mercado de trabalho, onde as mercadorias passam a circular, entre as quais, a própria força do trabalho. É claro que, nesse caso, a relação entre o capital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, como acontecia no sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia uma imposição sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou do escravizador. Agora não: ela se universaliza na sociedade de uma forma completamente diferente, é preciso que os homens estabeleçam relações entre si de forma mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente, proprietários. Todos têm que ser proprietários: os proprietários do capital (do salário) e os proprietários correspondentes. Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do outro lado a força de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário; com esse salário formavam o mercado e com isso então expandia-se a produção.

Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura do contrato, que se universaliza nesta época. Então, é somente com o aparecimento de uma nova forma de produção que se universaliza a figura do contrato juridicamente. A figura do contrato pressupõe pessoas contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há que haver portanto, a universalização das pessoas jurídicas. Há necessidade de que as pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar coisas de que tenham posse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, a liberdade: como é possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto é a igualdade. Vocês vêem, portanto, que as figuras jurídicas formuladas no direito civil especialmente (isso depois transcende para o direito público) acabam resultando de um processo de movimento das forças produtivas, da capacidade material dos homens, que determina formas diferentes. Não vejam, portanto, o contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado no cosmos. Não: primeiro existem as relações de troca, depois elas vão para o código para ser reguladas de forma detalhada, singular, e garantidas.

Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta estrutura de pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõe uma dimensão muito singular, muito interessante, que deve ser objeto de exploração. Não quer dizer que ela seja a única – cuidado com isso! Ela deve ser objeto da expansão metodológica porque ela nos dá algumas bases interessantíssimas para explicar um pouco melhor os próprios institutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um momento estratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia nova, interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal, mas pode nos dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro, principalmente dos processos pelos quais os institutos chegam a ser institutos jurídicos. É isto basicamente.

MEDIADOR : Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.

Parte II

Um tal Renatão

Olavo de Carvalho

28 de maio de 2003

No dia 26 de março, um tal “Renatão”, tendo lido e abominado meu artigo “Golpe de Estado no mundo”, pôs a circular na lista de discussões atitude@yahoogrupos.com.br a seguinte mensagem:

By the way, como dizem os atuais patrões do Olavinho, o Guru, ele nunca atacou a imunda trampa das privatizações feitas pelos comunistas da quadrilha de Santiago, com o objetivo de enfraquecer o potencial brasileiro. Ele nunca lançou a pecha da suspeição sobre o gerenciamento da PETROBRÁS e ANP, entregues às mãos de apátridas, ex-terroristas, como se houvesse ex-criminoso, que quase sucumbiram a empresa em escandalosos acidentes, que culminaram com a perda, ainda ocorrendo, pois são lucros cessantes, de bilhões de dólares, na sabotagem da trágica P36.

Olha, um cara para ter meu respeito e admiração tem que posicionar sua metralhadora bem no alto e bater em todas as direções de onde possa o inimigo atacar e não apenas maniqueistamente só enxergar inimigos vindo de um lado.

Para mim não serve.

As alegações do sujeito eram muito bobinhas. De maneira escandalosamente típica da babaquice nacional, ele não discutia os meus argumentos, mas a minha pessoa, avaliando se seria ou não digna de sua admiração e respeito, sem nem por um instante suspeitar que a admiração e o respeito de Renatões podiam não ser, para um escritor, um prêmio dos mais desejáveis.

Para ser um bom sujeito, no julgamento renatônico, eu teria de escrever, além dos artigos que escrevi dizendo o que ninguém dizia sobre mil e um assuntos, outros que repetissem o que todo mundo dizia contra as privatizações e a má administração da Petrobrás.

Eu jamais pensaria em atender a essa exigência, pois para fazer coro aos slogans da moda existem os Renatões que dão conta do serviço sem precisar da minha ajuda.

Não que esses protestos fossem, em si, injustos. Mas um sujeito não se mata de estudar durante quarenta anos só para depois fazer eco às manchetes do dia. Bem sei que no Brasil os intelectuais só existem para isso — para lamber o ego do eleitorado, como candidatos a vereador, em exibições de bom-mocismo. Se eu fizesse o que Renatão me exige, seria digno da admiração e do respeito de milhões de criaturas como ele — motivo mais que suficiente para que eu me abstivesse de fazê-lo.

Sendo, pois, irrelevante o conteúdo da mensagem, só um detalhe dela me pareceu digno de atenção: o insulto brutal e difamatório contido na expressão “By the way, como dizem os atuais patrões do Olavinho”.

Diante de coisas dessa ordem, não tenho o hábito de me recolher a um silêncio cúmplice, afetando superioridade, como o fazem os covardes e omissos que, dessa forma, incentivam a prática impune dos crimes de injúria e difamação até consagrá-los como direitos humanos fundamentais.

Informei-me, pois, sobre quem seria o engraçadinho e, sabedor de que se tratava aparentemente de um coronel da reserva do Exército Brasileiro, enviei a ele, em privado, a seguinte resposta:

Recebi através de amigos uma mensagem assinada “Renatão”, posta a circular numa lista de discussões, na qual o remetente, por não concordar com algo que escrevi, chamava os americanos de “os atuais patrões do Olavinho”.

A expressão é difamatória e duplamente insultuosa. Difamatória ao insinuar que sou escritor de aluguel, trabalhando, atualmente, para não sei quais “americanos”.

Insultuosa por isso mesmo e pelo diminutivo debochado. Não conheço Renatão, Renatinho, Renatona ou Renatinha, e nenhuma dessas criaturas tem o direito de alardear ou fingir intimidade comigo, muito menos de fazê-lo com afetação de desprezo, atitude mais apropriada a bate-bocas de prostíbulo do que a uma conversa entre homens sérios.

Dizem, para piorar as coisas, que o autor da porcaria usa farda do Exército Nacional. Não consigo imaginá-lo nesse traje honroso. Um assento de privada em torno do pescoço e um abacaxi na cabeça fingindo Carmen Miranda estariam mais ao jeito de quem escreve como ele.

Dizem também que o sujeito é você, mas custa-me acreditar nisso sem sua confirmação pessoal. Seria você capaz de reagir a argumentos com uma tal cafajestada?

Algumas horas depois, recebi do cavalheiro a seguinte mensagem, distribuída simultaneamente ao mesmo grupo de discussões:

Meus amigos, caiu a máscara! Como disse sempre, não existe ex-terrorista. Existe enrustido. Quando apertado, parte para a agressão torpe e desqualificada. Parte para a violência tão ao gosto das viúvas de Stalin e caterva.

Informo a todos que não retrucarei, porque meu teclado não é para mandar mensagens para pocilgas, saudações nacionalistas, Renato

Renato Penteado Teixeira
Cel Art R1 com muito orgulho.
Identidade MEx 02295460-07

Nessas linhas observam-se os seguintes detalhes:

  1. Um sujeito que desconheço espalha pela internet uma mensagem insultuosa e difamatória contra mim e, quando lhe exijo explicações, sai gritando que isso é “violência” e “agressão torpe e desqualificada”.
  2. Ele distribui suas mensagens a terceiros, pelas costas da vítima, e, quando esta lhe responde em privado, poupando-o generosamente de qualquer humilhação diante de seus amigos, ele reincide no espalhafato criminoso.
  3. À injúria e à difamação ele acrescenta agora a calúnia, acusando-me de “ex-terrorista” (coisa que não se sabe de onde sua imaginação tirou) e até de coisa pior: pois um terrorista foi terrorista e deixou de sê-lo e, segundo Renatão, fui terrorista e continuo sendo.
  4. Tendo-me acusado de servir por dinheiro aos americanos, acrescenta agora que o faço por ser… uma “viúva de Stálin”, um nostálgico do comunismo! Sua vontade de xingar é tanta, e tão incontrolável, que já nem cuida de selecionar os insultos com um mínimo de coerência. Literalmente, vale tudo. A má-fé do caluniador, no paroxismo do ódio histérico, não poderia revelar-se de maneira mais patente.
  5. Depois de aviltar-se a esse ponto, o indivíduo ainda assume ares de superioridade olímpica, dizendo recusar-se a descer das alturas onde imagina habitar até à “pocilga” em que, no seu entender, me encontro.

Em vista do exposto, não me resta senão responder já não em privado, mas de público, declarando, da maneira mais clara e inequívoca — e sem prejuízo das medidas judiciais cabíveis contra o insolente –, que o Cel. R1 Renato Penteado Teixeira, vulgo “Renatão”, é, além de burro pretensioso e arrogante, um caluniador e mentiroso, canalha e sem vergonha. É, ademais, um covardão, que bate pelas costas e, revidado, sai correndo.

Que ele se orgulhe da farda que o encobre, nada mais natural. Até o mais inepto recruta é dignificado pela farda que veste. O problema é saber se a farda, envergonhada daquele que em vez de honrá-la se esconde dentro dela, não vai acabar por vomitá-lo um dia.

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