Leituras

Mensagem ao sr. Denny Marquesani sobre a troca de e-mails entre ele e o sr. Luiz Pontual

Olavo de Carvalho

Como o sr. Denny Marquesani me remetesse cópía de uma correspondência trocada entre ele e o sr. Luiz Pontual, sobre assunto que me envolvia, enviei a ele a seguinte resposta:

Prezado Denny,

Se eu estivesse participando de um torneio de insignificância, talvez me preocupasse com esse ser todo feito de gordura, vaidade e miséria interior que é o sr. Pontual.

O que ele diz do Michel Veber é falso. O Michel era um verdadeiro artista da língua portuguesa. Basta ler os comentários dele à Metafísica Oriental para notar isso à primeira vista. Mas é coisa que um sujeito que ignora a regência do verbo “dirigir” não pode mesmo perceber.

A correçãozinha que o soi-disant porta-voz da Tradição faz da minha tradução é idiota. Ninguém escreve em português “Tomei este tema” em vez de “escolhi este tema”.

Significativa da forma mentis do indigitado é a menção dele ao meu “passado tenebroso”, do qual ele certamente sabe mais do que eu e pelo qual ele finge desinteresse olímpico no instante mesmo em que, pelo tom em que fala, procura atiçar curiosidade a respeito. É um truque velho de velha fofoqueira.

Esqueça esse coitado e continue o seu trabalho.

Abração,

Olavo

P. S. Acrescento, para esclarecimento dos leitores, que os termos “sinistro” e “tenebroso”, com que o sr. Pontual se refere à minha pessoa, sugerem uma de duas coisas: ou cometi pelo menos alguns crimes hediondos que justifiquem o emprego desses qualificativos, ou tenho assombrado as noites do sr. Pontual com aparições medonhas que ele toma como realidades. Se é este o caso, não há nisso nada de inusitado. Como tantos outros “homens da Tradição”, o sr. Pontual gosta de imaginar que é René Guénon em luta contra “influências psíquicas” vindas do baixo mundo sob a forma de ursos negros e outros animais temíveis. Hoje entendo que essa parte da sapiência guénoniana constituía-se de histeria misturada com um pouco de ópio, mas não faço idéia das práticas ascéticas com que o sr. Pontual alcançou resultados similares. Desculpem a minha ignorância, mas não sou um iniciado nos mistérios do onanismo espiritual.

P.S. 2: Novas frescuras pontuais

Em resposta a esta breve nota, o sr. Luiz Pontual derramou sobre todos os seus cinco leitores umas duas dúzias de postagens no Orkut, onde, naquele seu inconfundível estilo de menininha, jura que não quer falar do assunto. De passagem, expressa sua sincera indignação contra o sr. Denny Marquesani, o qual teve o desplante de me comunicar as intrigas que dele ouvira contra mim. Nos princípios da sua alta moralidade, falar pelas costas, à distância e sem que a vítima possa ter disso a menor notícia, é seu direito sacrossanto, acintosamente desrespeitado pelo sr. Marquesani, um profano que não compreende as sutilezas espirituais do segredo iniciático.

P.S. 3 – O sr. Pontual parece ter passado dos temores exagerados à bazófia petulante. Na sua carta ao sr. Marquesani, ele disse ver em mim uma criatura tenebrosa, sinistra, mas agora ele me pinta com os traços prosaicos de uma galinha. Malgrado as aparências, não há nisso contradição alguma. Do ponto de vista das minhocas e outras criaturas vermiculares, nada pode ser mais tenebroso e ameaçador que uma galinha. Quase posso vislumbrá-lo, daqui, chacoalhando em desespero a sua roliça pessoa espiritual e física pelo chão, em busca de refúgio, à primeira suspeita imaginária de que andei ciscando no seu terreiro. Convenhamos: é tocante.

Richmond, 30 de junho de 2009

Aristóteles em Nova Perspectiva (por João Seabra Botelho)

João Seabra Botelho

Leonardo, 10 de maio de 2009

A “Leonardo” leva já dois anos e meio de presença nestas suas vestes informáticas e, a confirmar a sua radical irrelevância para o “establishment” cultural, social, político, académico e editorial, está o facto de nunca ter recebido aqueles testemunhos de “estima e consideração” próprios do ambiente letrado, que são a oferta de livros feitos pelos “oficiais do mesmo ofício”.

Para isso, ninguém nos liga nenhuma! Excelente.

Libertos assim, como sempre desejámos, de qualquer serventia ou cumplicidade, seja com os mais visíveis apparatchiks da “cultura”, seja com os mais discretos ou secretos “independentes, mas conformes”, que lhe ocupam, à “cultura”, os contornos da auréola, fomos, contudo, recentemente prendados com duas obras.

Prendados, apenas pela nobre razão de seus autores quererem ser lidos; apenas isto, porque outras pretensões não envenenam, bem o podemos avaliar, o desejo dos autores, nem tampouco seriam exequíveis, connosco.

E sendo assim o que somos, tanto os autores como os leitores, é em concreta liberdade e amor à verdade que agora nos manifestamos e deixamos o nosso testemunho sobre as obras recebidas.

São elas “Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à teoria dos Quatro Discursos”, de Olavo de Carvalho, e “Considerando os filósofos”, de Carlos Aurélio.

Do primeiro livro, irei agora dizer alguma coisa. Do segundo, será de seguida publicado um texto de Miguel Bruno Duarte. Mas outros textos poderão aparecer mais tarde, sobre qualquer um destes dois livros, porque temos em ambos muito “pano para mangas”.


A perpetuidade da Filosofia Clássica

A primeira nota que quero deixar bem frisada sobre o livro de Olavo de Carvalho foi ter tido uma constante, surpreendente e agradável sensação de familiaridade com o texto, com o pensamento, com o exercício filosófico que subjaz a este livro.

E, no entanto, o livro tem ideias originais, teses invulgares e propostas inovadoras…

Essa familiaridade foi, então, a primeira condição ou circunstância que suscitou a interrogação. Porquê?

Depois, eis o facto de estar também documentada e patente, no livro, a polémica que esta obra gerou, que me causou um “dejá vue” arrepiante da reacção típica do bacharelismo positivista que controla, lá como cá, muitos dos púlpitos e varandas do “templo da cultura oficial”, onde as novas obras e autores devem obedientemente desfilar, para aprovação comprometedora dos maiores e aplauso invejoso dos menores.

Respondo já à interrogação feita acima lembrando agora a conclusão do texto de Orlando Vitorino, aqui recentemente publicado, sobre Álvaro Ribeiro. Essa conclusão é a de que cabe à Filosofia Portuguesa a demonstração da perpetuidade da Filosofia Clássica, e nesta, da obra de Aristóteles, “ a filosofia natural do homem”.

Ora, para mim, a familiaridade que senti com esta obra deve-se ao simples facto de Olavo de Carvalho ser um filósofo a quem também tocou essa missão!

Em favor desta minha afirmação não quero adiantar supostos esclarecimentos sobre o modo misterioso em que tais vínculos espirituais se transmitem, que a serem tidos em conta afastariam parte do espanto que esta afirmação possa causar; basta-me dizer, mais simplesmente, que não é “impunemente” que se filosofa em Português! Filosofar em Português, aqui, como no Brasil, ou em Macau, é sempre inspirar, ou aspirar, os tropos lusos que no incansável tempo ganharam morfologia própria e sustêm a Língua Portuguesa. O resto, vem da alma de cada um! E se Olavo nasceu autor de razão animada, não admira que filosofe com autonomia e que o seu filosofar seja um fruto germinado ao sol e à chuva de uma Pátria singular, mas já universal. E foi sob este sol e esta chuva que melhor se entendeu Aristóteles, enquanto decorriam muitos e longos séculos e se mudavam as vontades.

Depois das obras de Álvaro Ribeiro, como Razão Animada, Estudos Gerais, Escola Formal ou a Arte de Filosofar, que reabriram em Portugal, no século XX, os mais altos horizontes da filosofia aristotélica, vejo agora em Olavo de Carvalho, e nesta sua obra, o estudo aristotélico actual mais relevante da Escola Formal, e com não menor relevância até na sua aptidão didáctica para quem se queira iniciar no que mais importa da obra aristotélica, aptidão ou valor que Álvaro também nunca desdenhou ou esqueceu nos seus livros.

E, no entanto, até é possível que o Olavo não se sinta pessoalmente identificado nestes termos, já que não é pequeno o oceano concreto que nos separa a todos, o Atlântico, e um escol requer alguma proximidade e conformidade de conceitos e termos. Mas o que possa faltar de medida e peso, para firmar essa sintonia, sobra na espontânea empatia de sentimentos e pensamentos que existe, seja lá por que razão seja, (se a razão que já adiantei não chegar), e me cumpre constatar, por ser verdade.

O facto, pois, é este: comungamos, interiormente, de uma mesma “traditio”; e, como se vê, cá e lá, para o bem e para o mal.

A tese fundamental deste livro é a unidade do saber em Aristóteles, unidade que tem o seu concreto assento na existência de um único potencial intelectivo, o discurso humano, que se desenvolve por quatro disciplinas, a Poética, a Retórica, a Dialéctica e a Lógica. Na intuição desta unidade discursiva e das quatro modalidades principais em que Aristóteles propõe o seu desenvolvimento unitário, para atingir assim a plenitude das suas formas próprias, perfazendo no horizonte os limites do possível saber humano e deixando entreaberta a via sófica, vê Olavo, e com razão, o resultado da sua autoria, já que de ninguém ouviu ou aprendeu isto.

Esta tese, obviamente, contraria as vulgarizadas versões sectárias de Aristóteles, e disso tem clara consciência Olavo de Carvalho, quando afirma que irá apresentar “como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumam encarar como guardião da esquizofrenia”, da esquizofrenia que é o autêntico pilar da tese da dualidade do saber. O seu esforço não é vão, e quedam esclarecidas as suas razões e, supletivamente, as causas do sectarismo corrente.

Esta “doutrina dos quatro discursos” é lucidamente exposta, tanto nas curiosas contingências históricas que terão contribuído para a sua ocultação ou esquecimento – apenas Avicena refere esta visão com alguma acuidade – como sejam o desaparecimento da Poética praticamente até ao Renascimento, ou a hipertrofia da argumentatio da Dialéctica e da mecanicidade da Lógica dos silogismos nas disputas teológicas e nos conflitos de Fé, ou na gradual morte da Retórica enquanto instrumento vital da pólis e da domus justitia, como nas suas causas intrínsecas e essenciais, que a natureza humana impõe e que determinam uma única fonte de culto e cultura, de pensamento e expressão, um único cadinho onde se fundem sensibilidade, memória, imaginação e razão, o discurso humano; eis a teoria de “uma expressão integral do logos”.

Ao mesmo tempo que vai expondo a sua original descoberta, original por se tratar de algo que se encontra no âmago da doutrina aristotélica e foi bebido na sua origem, descoberta por ter sido mostrada ou demonstrada, após muitos séculos de obnubilação, Olavo vai deixando igualmente a sua interpretação de outros tópicos da obra do Estagirita, alguns deles não menos relevantes para o reavivar deste pensamento abrangente e orgânico, estruturado mas dinâmico, que caracteriza a unidade do monumental opus aristotélico.

Também se encontra nesta obra uma vertente mais virada para a história das ideias: da história remota, na metódica leitura de várias épocas culturais sob a perspectiva do quadro da evolução sequencial dos “quatro discursos” e sua respectiva relação com as mentalidades próprias dessas épocas; da história recente, com a impagável e humorística polémica travada com alguns “sábios da mula ruça”, dos muitos que pululam pelos muitos galhos da frondosa “cultura oficial”.

Gostaria de deixar aqui, após esta primeira referência global à obra, os temas que me levantaram dúvidas ou simples desacordo, já que em relação a tudo o mais, nada melhor que a leitura da obra, que está dsponível na Net para aquisição, e que é o modo adequado de conhecer realmente as teses de Olavo de Carvalho.

Tenho, então, para concluir, as seguintes notas a acrescentar:

– Julgo que a Sofística não está suficientemente mencionada no contexto dos “quatro discursos”; compreende-se que traria algum desconforto a introdução de um “quinto discurso”, ou de uma possível versão deformada ou sombria de um, ou mais, dos quatro disccursos, mas seja como for, a questão da sofistica é demasiado relevante, na filosofia em geral, na filosofia Grega em particular, e na própria obra de Aristóteles, nomeadamente no seu aspecto ético, para não merecer mais que esta breve referência : “Aristóteles adverte expressamente os seus discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialécticos com quem desconheça os princípios da ciência; seria expôr-se a argumentos de mera retórica, prostituindo a filosofia.”

– Já na pag. 41 Olavo descreve: “De discurso em discurso há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível; da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceites na praxis colectiva; porém, da massa de crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem aos rigores da triagem dialéctica; e destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência como absolutamente certas e funcionar, no fim, como premissas de raciocínios científicamente válidos.” Ora, temos aqui uma descrição que me parece excessivamente reducionista, da ciência como filtro que sintetiza dados vários, e falsos, muitos deles: tal visão gera-se com o racionalismo Moderno, e julgo que é anacrónica com Aristóteles e a sociedade Ateniense. Aristóteles não tem uma visão sintetizante, ascendente e afunilante do exercício de conhecer, e os dois movimentos, ascendente e descendente, nele se completam e estimulam mutuamente… Tanto vale a sintetização e a abstracção, como momentos do processo científico, quanto vale a atenta e curiosa observação de novas e multímodas formas em que a vida se organiza, e a imaginação de novas espécies e diferenças, ou a intelecção de géneros e categorias. Nos discursos poético e retórico, aliás, exige-se necessariamente o desenvolvimento das capacidades próprias ao apreciar e recriar do concreto e do diverso, e na própria dialéctica Aristóteles não sobrevaloriza a síntese sobre a análise, ou a dedução sobre a indução; portanto, só se quisermos ver o Organon em versão algo estática e piramidal, aqui já talvez excessivamente medieval, é que iríamos também coroar e subjugar todo o sistema com a Silogística que, essa sim, filtra as proposições pelo crivo da certeza apodítica. Em suma, creio que Aristóteles não desdenharia de ver representado o seu sistema como esférico, mas não piramidal. O dinamismo não gera mais formas sob a égide da crença e da ignorância, enquanto o saber se encarrega de afunilar a verdade num cada vez menor número de seres ou formas, através da subida nos “discursos”. Para Aristóteles, os entes a serem conhecidos são incontáveis e mais reais, ou verdadeiros, que os fantasiados ou aceites pelo senso comum. Conhecer, é conhecer essa diversidade múltipla dos entes, e tão importante é classificá-los numa só classe, como reconhecer-lhes a diferença única que os identifica. Evoluir na credibilidade ou cientificidade dos discursos não é só depurar ou filtrar as fantasiosas crenças do ignorante, numa espécie de movimento do múltiplo ao uno; a organização, ou o organon, permite avançar disciplinada e efectivamente para o conhecimento da imensa multiplicidade de entes e eventos, não para a diminuir, ou abstrair, ou para visionar os modelos do seu mestre, Platão, mas para conhecer o movimento universal que é a demonstração da inteligência divina e que se manifesta nos movimentos de todos os entes, que se movem para culminarem em, ou cumprirem a, sua perfeição.

– Finalmente, apesar de registar com agrado que não é o hilemorfismo, ou a tese do composto da matéria e da forma, que sempre vem à baila nas divulgações de Aristóteles, que mais interessa a Olavo, mas antes a tese da potência e do acto, que sendo mais difícil é muitas vezes posta de lado, embora seja a mais importante contribuição de Aristóteles, na minha opinião, para ultrapassar os desconcertantes paradoxos do movimento e da imobilidade que tanto “trabalho” deram a Platão e a toda a cabeça pensante de Atenas, tenho as minhas objecções à leitura que Olavo faz dessa tese. Mas sobre esse tema será preciso um outro texto, que aqui já não tem cabimento, até porque esse tema vai obrigar-me a ser… digamos atrevido, talvez original.

Lisboa, 10 de maio de 2009

Olavo e Newton – Parte I

Prezado Hélio,

Nunca esperei que minhas coisas fossem lidas no Brasil com a atenção e seriedade com que você as lê. Parecia-me que isso só viria a acontecer por volta de 2070, caso ainda existissem brasileiros. Sinceramente, estou impressionado. O simples fato de você perceber que alguns dos meus escritos jornalísticos são compactados de demonstrações implícitas já faz de você um leitor muito especial, daqueles para os quais um autor se alegra de escrever.
Se você continuar assim, logo alcançará a maior glória que um filósofo pode alcançar no Brasil, que é ser chamado de filósofo entre aspas pelas pessoas que não sabem o que é filosofia sem aspas. Abração e vá em frente.

Olavo de Carvalho

Olavo e Newton – Parte I

Hélio Rodrigues Pereira

13 de março de 2009

ÍNDICE

Prefácio

1- Introdução

2- Porque Olavo é filósofo?

2.1- Olavo sobre os princípios elementares, de Chesterton a Lukasiewicz

2.1.1. A concepção de Chesterton
2.1.2. A concepção histórica: dos antigos filósofos a Hilbert
2.1.3. A concepção de Lukasiewicz
2.1.4. A concepção de Olavo de Carvalho

2.2- Olavo e a Teoria do Sujeito-Objeto

2.3- Olavo e a filosofia aristotélica

2.4- Olavo e a Teoria dos Quatro Discursos

3- Resumindo o artigo

4- A filosofia e a ciência no newtonismo

5 – Os problemas da intuição na ciência

Prefácio

Os defensores de Olavo de Carvalho têm sofrido uma injusta acusação. Acusam-nos de simpatizarem com ele somente por causa de afinidades ideológicas, como se aceitassem indiscriminadamente qualquer coisa que ele escreva em função de alguma forma de fanatismo que faz seus admiradores agirem como uma torcida organizada. Embora eu não possa negar que existem aqueles que agem assim, afinal isso faz parte da natureza humana, a verdade é que eu quero defender aqueles que apreciam seus textos por outros motivos além daqueles que seus acusadores estão habituados a supor. Meu propósito é tentar mostrar o quanto tal acusação pode ser injusta. Para atingir este objetivo, primeiro vou apresentar as razões que justifiquem o porquê dele merecer ser lido e ser considerado um filósofo. Em seguida vou apresentar algumas objeções ao texto http://www.olavodecarvalho.org/semana/060615jb.html mas não sem antes mostrar também que muito do que foi afirmado pelo seu autor de fato procede, e para este fim, será apresentado uma versão daquilo que penso ter entendido de seus argumentos. Que isso sirva para esclarecer que o fato de alguém apreciar seus artigos, não significa que o esteja fazendo sem espírito crítico, e para tanto, busquei fazer um trabalho digno e honroso a todos os lados desta questão.

INTRODUÇÃO

O artigo do filósofo Olavo de Carvalho:
http://www.olavodecarvalho.org/semana/060615jb.html é muito mal compreendido. Seus críticos, ou não entendem exatamente o que o texto quer dizer, ou desconhecem muito daquilo que é tomado como base para a tese defendida, pois suas reações são dominadas pela indignação diante dos ataques aos méritos de Newton e sua mecânica. Por outro lado, as idéias deste texto são apresentadas de modo problemático, pois assumem uma série de pressupostos. É difícil não receber com estranheza uma tal exposição sem estar informado das considerações e análises que o precederam. Possivelmente muitos dos argumentos que poderiam explicar o que parece ser uma especulação sem justificativa, não pôde estar presente no texto devido às restrições de espaço impostas pelos rigores editoriais. Trata-se de fato, de uma reflexão filosófica hermética, mas é de um hermetismo atípico, pois não se caracteriza pela profusão de um vocabulário que exige estudos prévios, mas pela quantidade de observações cujo significado só pode ser absorvido após leituras anteriores, e familiaridade com o pensamento de seu autor. Muitos daqueles que percebem de imediato o que está sendo dito, talvez discordem disso, alegando inclusive que se trata de uma visão intuitiva que é inteligível a qualquer pessoa inteligente. Para estes, o que posso dizer é que concordo que existem muitos juízos intuitivos neste texto, mas por outro lado, penso que existem aspectos que não foram abordados nem pelo autor e nem pelos críticos, e que precisam sê-lo para que se possa resgatar o que está oculto, completar o que falta e reconstituir o fio de Ariadne. É com este propósito que justifico o porquê deste post ser escrito.

Contudo, antes de prosseguir, sabendo que muitos dos que irão ler são seus detratores contumazes, sinto que precisarei seguir uma metodologia especial, para potencializar ao máximo a capacidade de que o que eu venha escrever seja lido com um mínimo de respeito necessário a um julgamento imparcial das idéias aqui envolvidas. Em obediência a esta metodologia, antes de apresentar o texto analisado na forma como eu entendi, buscarei divulgar os méritos filosóficos de seu autor para justificar o porquê dele merecer ser lido, tentando expor isso de um modo ainda não tentado.

Após isso, será apresentado aqui o meu ponto de vista sobre o tema, que se resume em dois pontos: a) As críticas contra e a favor de Newton se dirigem a um objeto de discurso que não corresponde aquilo que se supõe ser debatido. b) O fenômeno cultural apontado no artigo de Olavo, de fato existe, mas será proposta aqui uma outra origem.

2- PORQUE OLAVO É FILÓSOFO ?

Para que se possa ter alguma expectativa razoável de que eu vá conseguir apresentar razões convincentes de que Olavo é um autor que merece respeito e que no mínimo os seus textos filosóficos deveriam ser lidos, a minha estratégia será apresentar de que modo os insights do filósofo acrescentam informações adicionais à um debate em processo.
Irei mostrar alguns exemplos em que o progresso em determinadas discussões filosóficas recebeu uma contribuição original capaz de responderem muitas das questões em aberto, a partir de concepções apresentadas em suas apostilas da Internet. É com essa forma de exposição que será possível dar uma idéia mais acurada do valor filosófico de suas idéias, na medida em que forem identificadas como um ganho de informação nas investigações pendentes.

2.1- Olavo sobre os princípios elementares, de Chesterton a Lukasiewicz.

Um destes ganhos de informação que posso ressaltar é a participação do filósofo Olavo de Carvalho na evolução do entendimento a respeito das propriedades dos princípios elementares. Os princípios elementares, os postulados, os axiomas, são os conhecimentos primeiros, ou as afirmações primeiras, dependendo da postura que se tem em relação a elas. São os primeiros passos para erigir um discurso ordenado, uma teoria, que faz das conseqüências destas primeiras afirmações, um sistema gerador de afirmações segundas e terceiras. Este sistema gerador é reconhecido no mundo lógico e matemático como uma atividade dedutiva, e possui a utilidade do sistema dedutivo, que na economia do conhecimento pode ser compreendido assim: como toda argumentação teórica provém da validade destas afirmações primeiras, tudo que com é preciso se preocupar é que as tais afirmações sejam válidas que o resto das afirmações o será automaticamente.
Existem vários exemplos de teorias e filosofias escritas seguindo este princípio explicitamente. A geometria euclidiana se baseia nos conceitos primitivos de reta, ponto e ângulo e algumas propriedades elementares. A mecânica newtoniana se fundamenta nas três primeiras leis. A análise matemática é uma dedução das propriedades elementares da teoria dos conjuntos e dos princípios que caracterizam os números, e assim em diante.

Para atingir a meta estabelecida neste capítulo, começarei com o artigo escrito por Chesterton em 22 de junho de 1907, que fornece uma idéia de como estes princípios costumam serem compreendidos:

2.1.1 – A concepção de Chesterton


http://www.chesterton.org/gkc/philosopher/v1n6.gkcessay.hm

“What modern people want to be made to understand is simply that all argument begins with an assumption; that is, with something that you do not doubt. You can, of course, if you like, doubt the assumption at the beginning of your argument, but in that case you are beginning a different argument with another assumption at the beginning of it. Every argument begins with an infallible dogma, and that infallible dogma can only be disputed by falling back on some other infallible dogma; you can never prove your first statement or it would not be your first. All this is the alphabet of thinking.”

Tradução:

“O que as pessoas de hoje em dia precisam entender, é simplesmente que todo o argumento começa com uma suposição; isto é, com algo que você não duvida. Você pode, claro, se for de seu interesse, duvidar da suposição inicial do seu argumento, mas neste caso você está começando um argumento diferente com uma outra suposição inicial. Todo argumento começa com um dogma infalível, e tal dogma infalível só pode ser questionado recorrendo a algum outro dogma infalível; você nunca pode provar a sua primeira declaração ou esta não seria a sua primeira. Tudo isto é o be-a-bá do pensamento.”

Então, segundo Chesterton, os princípios elementares nada mais são do que um dogma que não se prova. Bom, esse ponto de vista parece incompleto. Existem, além dos princípios elementares que assumem o papel de dogmas, aqueles que fazem parte de um conjunto coerente e que se provam mutuamente, e neste caso os tais pressupostos adquirem uma legitimidade ainda maior.

Para ilustrar, imagine uma situação em que há os pressupostos 1, 2 e 3. O pressuposto 1 fundamenta o 2, o pressuposto 2 fundamenta o 3 e o pressuposto 3 fundamenta 1. Pode haver necessidade de um pressuposto adicional para fundamentar coisas que não podem ser deduzidas dos pressupostos 1, 2 e nem de 3. Desta forma, pode-se assumir uma outra premissa, o pressuposto 4. Se o pressuposto 4 não deduzir e nem for deduzido pelos pressupostos 1,2 e 3, então teremos um pressuposto independente, ou, um axioma independente. Mas, segundo a expressão: “Todo argumento começa com um dogma infalível, e tal dogma infalível só pode ser questionado recorrendo a algum outro dogma infalível; você nunca pode provar a sua primeira declaração ou esta não seria a sua primeira.” Pode-se inferir que Chesterton aparentemente não conhece a ilustração acima citada e, portanto, se levarmos em conta suas observações, os pressupostos 1,2 e 3 deveriam estar numa relação hierárquica em que um prova o seguinte, mas não é provado pelo seu sucessor. Para que ninguém pense que a ilustração citada é uma abstração hipotética, menciono como exemplo que os Axiomas de Peano e o Princípio da Boa Ordenação, na Análise Matemática, cumprem este papel de se fundamentarem mutuamente.

Todavia, é preciso dar um desconto a Chesterton, porque seu interesse não era o de fazer afirmações precisas sobre os princípios elementares, mas o de mostrar a inutilidade, a injustiça, de achar que um discurso só é válido se todas as afirmações dos discursos forem válidas, porque por tal critério, nenhum discurso possível seria válido pelo motivo de que sempre haverá suposições assumidas que não podem ser validadas em qualquer discurso. Tal exigência acabaria por paralisar qualquer debate. Bom, como este não é o foco desta discussão, o passo seguinte é conferir o que mais está sendo dito sobre o tema.

O texto a seguir é uma parte do livro do acadêmico Décio Krause Introdução aos Fundamentos Axiomáticos da Ciência, publicado em 2002 e que é um tratado mais completo que encontrei sobre o assunto.


2.1.2. A concepção histórica: dos antigos filósofos a Hilbert

“É fato universalmente aceito que o método axiomático é originário da Grécia antiga, ainda que as razões de sua origem sejam obscuras. A. Szabó, por exemplo, sustenta que ele foi ‘emprestado’ dos matemáticos, sendo originário da escola eleática, que tem em Zenão de Eléia (que viveu no início do século V A.C.) um dos mais destacados e cultores do método dialético em filosofia. Como diz Szabó, “eles [os gregos] estavam acostumados ao fato de que, quando um dos contendores de um debate quer provar algo ao outro, deve iniciar com uma asserção que seja aceita por ambos. Essa asserção era chamada de ?p???es?? [hipótese]- o alicerce do debate. Este método foi mantido também na matemática sistemática, a qual baseava-se em sentenças que se acreditava eram aceitas por qualquer um sem prova, e também chamadas hipóteses da matemática. A primeira espécie de tais hipóteses eram as definições, as quais para os gregos eram os limites [contornos] dos conceitos (noções ) usados em matemática, e eram dados sem prova”.

“Como salienta Szabó, há no entanto outra maneira de entender a palavra ‘hipótese’ além daquela de considerá-la uma asserção inicial que não é demonstrada, e aceita verdadeira sem prova. Trata-se de uma vê-la como uma asserção que é posta tentativamente para que se possa investigar a sua veracidade. Ambos os usos são encontrados na filosofia grega; o primeiro pode ser visto claramente (como mostra este autor) no diálogo platônico Fedon onde Sócrates fala de seu ‘método’ de iniciar com uma hipótese e considerar como verdadeiro tudo o que se harmoniza com ela. A forma de se visualizar essa ‘harmonia’ seria a demonstração ou prova. A segunda acepção é posta no diálogo Teeteto, igualmente de Platão (429-348 a.C.), no qual é colocado o problema de se verificar se o nosso conhecimento e nossas percepções sensoriais coincidem. A alegada coincidência é posta como uma hipótese, (na segunda acepção acima), e é mostrada que ela conduz a uma contradição, levando Sócrates a concluir que tal hipótese não pode portanto ser verdadeira. Este tipo de raciocínio, tipicamente filosófico, teria originado o método de prova mais interessante pela matemática grega, o da prova indireta, enormemente usado em matemática, como por exemplo pelos pitagóricos para demonstrar a incomensurabilidade da diagonal de um quadrado com o seu lado, e teria origem na filosofia eleática, segundo o mencionado autor.” [2]

Neste texto de Décio Krause, é feito um levantamento histórico da origem do método axiomático. É possível perceber através deste trecho o modo como a demanda natural por debates mais eficazes exigiu, por necessidade, a elaboração e o uso dos princípios elementares. Todavia, diferente do que Chesterton afirmou anteriormente, tais suposições podem assumir tanto o papel de um dogma ao qual não se prova, como uma asserção cuja validade poderá ser refutada pelas suas próprias conseqüências.

Mas ainda não acabou:

“O método axiomático, apesar de ter sido usado por diversos autores importantes, como Arquimedes (287-212 a.C.) e Isaac Newton (1642 – 1727), só adquiriu maturidade no final do século XIX, principalmente devido ao trabalho de matemáticos como David Hilbert (1862- 1943). Aliás a radical mudança que se deu em relação à interpretação do método axiomático é assunto que nos interessa, motivo pelo qual teceremos algumas considerações a este respeito, ainda que não abordemos em detalhes os aspectos históricos, para os quais remetemos o leitor às nossas referências.”[3]

“Quando estamos investigando os fundamentos de uma ciência, devemos estabelecer axiomas que contenham uma descrição exata e completa das relações que subsistem entre as idéias elementares dessa ciência. Os axiomas assim postos são ao mesmo tempo as definições dessas idéias elementares, e nenhuma afirmativa no domínio da ciência, cuja fundamentação está sendo ensaiada, pode ser considerada correta a menos que possa ser derivada daqueles axiomas por meio de um número finito de passos lógicos
D. Hilbert, ‘Mathematical Problems’, 1902.

“Em seu Grundlagen der Geometrie, de 1899, Hilbert apresenta uma axiomatização (aceita como adequada para os padrões atuais de rigor ) da geometria euclidiana. O importante é que, como veremos abaixo, Hilbert não via necessidade de atribuir conteúdo intuitivo aos conceitos utilizados, como as definições acima referidas pareciam pretender dar; para Hilbert esses conceitos teriam seu papel determinado pelos axiomas da teoria. Este ponto particular fez nascer uma importante polêmica entre o matemático Gotlob Frege (1848-1925) e Hilbert acerca da natureza do método axiomático. Para Frege os conceitos primitivos deveriam ser ‘evidentes’, intuitivos, ao passo que para Hilbert, a sua interpretação seria independente da sua contraparte formal. Isso não quer dizer, que Hilbert defendesse que a matemática deveria se tornar um puro jogo combinatorial, destituída de significado, como ficou difundido em tempos recentes. Leo Corry desmente esta interpretação, mostrando que Hilbert jamais abandonara o aspecto intuitivo de uma teoria matemática, e que destacara que a formalização, que grosso modo faria da teoria um tal ‘jogo destituído de significado’, teria a única função de diminuir ao máximo aspectos intuitivos, como por exemplo a suposição (dada sem prova ) mencionada acima acerca da Proposição I de Euclides de que os círculos se cortam, de forma a poder enfatizar a contraparte lógica, bem como excluir possíveis contradições e asserções supérfluas que se pudessem assertar acerca da teoria. No ano seguinte (1900) Hilbert distinguiu dois modos básicos pelos quais os objetos poderiam ser introduzidos na matemática: o método genético (ou construtivo) e o método axiomático (ou postulacional).”

“Por exemplo, os números reais são introduzidos ‘geneticamente’ quando são definidos a partir dos racionais (via cortes de Dedekind e sequências de Cauchy, ou outro procedimento equivalente ), sendo os racionais por sua vez dados como certas classes de equivalência de inteiros, e estes como certas classes de equivalências de números naturais, os quais por sua vez podem ser ‘construídos’ no escopo da teoria dos conjuntos, como conjuntos particulares.
Axiomaticamente, os números reais são caracterizados pelos axiomas de corpo ordenado completo, estrutura esta que tem os cortes de Dedekind ou certas classes de equivalência de seqüências de Cauchy, por exemplo, como modelos. Do mesmo modo os números naturais podem ser caracterizados pelos chamados axiomas de Peano.” [4]

A partir deste estudo de Krause, foi feito um novo progresso. Se em Chesterton, os princípios elementares são dogmas que não se provam, no pensamento grego os princípios elementares podem ser também uma hipótese para explorar uma idéia cuja conseqüência poderá refutá-la. Já em Hilbert, na medida em que se identificam os princípios elementares como axiomas, estes não precisam estar restritos a qualquer elemento subjetivo. Ou seja, de acordo com Hilbert, não é mais necessário possuir uma justificativa para formular um princípio elementar, estes não estão mais obrigados a estar associados a um juízo intuitivo. Em outras palavras, a auto-evidência de um axioma, em Hilbert é o resultado de uma interpretação que independe de como este axioma foi formulado, o que difere da posição de Frege. Frege, por sua vez, afirma que um axioma precisa ser auto-evidente.

A posição de Hilbert era compreensível, pois este tomou a defesa das Teorias dos Conjuntos de Cantor, cuja formulação, embora fosse bastante útil, estava em desacordo com o que muitos matemáticos consideravam como adequado para se elaborar conceitos matemáticos.

Mas, o que seria um axioma auto-evidente ? Hilbert diz que é uma questão de interpretação, Frege, por outro lado, defende que é indispensável. Mas, afinal, como sabemos se um axioma é auto-evidente ?

Bom, como será visto adiante, Lukasiewicz tem uma posição completamente diferente de Hilbert, Frege e Chesterton a respeito, não só, do papel que deve ter um princípio elementar, mas possui também uma noção peculiar do que seria um axioma auto-evidente.


2.1.3. A concepção de Lukasiewicz.

“Em primeiro lugar, Lukasiewicz constata que o princípio da não-contradição não pode ser demonstrado com base em sua evidência; com efeito, a ‘evidência’ em si mesma não constitui critério seguro de verdade. Também resultaria inconseqüente, por outro lado, a tentativa de se derivar o Princípio a partir de nossa estrutura psíquica, uma vez que leis psicológicas apenas são suscetíveis de comprovação através do método experimental, e este não nos autoriza sequer a formular a Lei da não-contradição como princípio válido em primeira aproximação. Uma terceira possibilidade seria, então, procurar deduzir o Princípio da definição de ‘negação’ ou de ‘falsidade’. Se “A não é B” exprime, por exemplo, simplesmente a falsidade de “A é B”, para natural concluir que essa definição acarreta o Princípio. Contudo, nos diz Lukasiewicz, isto não ocorre na realidade: mesmo que aceitemos como correta a definição precedente de falsidade, nada impede que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras; apenas se impõe, como conseqüência, que a proposição “A é B” é simultaneamente falsa e verdadeira. A Lei da não-contradição envolve a noção de conjunção, e não decorre unicamente da definição de falsidade (ou negação).”

“O lógico polonês nos chama a atenção para outra definição de ‘verdade’ e ‘falsidade’ que, de uma certa maneira, parece ser mais fecunda que a tradicional: a proposição “A é B” é verdadeira se corresponde a algo objetivo; falsa, em caso contrário. Similarmente, “A não é B” é uma proposição verdadeira se representa vínculo objetivo; falsa, caso tal fato não se dê. Levando-se em consideração tais critérios, nada impede ‘a priori’ que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras, desde que representem situações objetivas.
Lukasiewicz também observa que qualquer defesa do princípio da não-contradição deve, necessariamente, levar em conta o fato de que existem ‘objetos contraditórios’, como, por exemplo, o Círculo Quadrado de Meinong. Para tais objetos, claro está que o Princípio não é válido. Obviamente o lógico polonês não pressupõe que Aristóteles pudesse ter trabalhado com base em tais considerações, que fazem parte de um acervo de estudos que começou a se desenvolver apenas a partir de meados do século XIX, no esteio do florescimento da lógica simbólica. Entretanto, isso não nos impede de salientar a relevância intrínseca da observação de Lukasiewicz: a existência de ‘objetos contraditórios’ foi confirmada pelos desdobramentos recentes da lógica, particularmente pela Teoria dos sistemas formais inconsistentes. Podemos hoje atestar a existência de teorias lógico-matemáticas onde aparecem objetos contraditórios e que, por conseguinte, derrogam o princípio da não-contradição. Tendo em vista tais perspectivas, o Princípio não se mostra tão absoluto e intocável quanto poderia parecer à primeira vista. Aliás, Lukasiewicz afirma que, mesmo para Aristóteles, o princípio da não-contradição não poderia ser uma lei suprema, ao menos na acepção de que constitui pressuposição necessária de todos os demais axiomas lógicos.”

“Citando célebre passagem de Aristóteles nos Analíticos Posteriores (An. Post. A, 11, 77a 10-22), o lógico polonês assevera que o seguinte silogismo seria válido, de acordo com os postulados do Estagirita:

B é A (e também não é não-A)
C, que é não-C, é B e não-B
_________________________
C é A (e não é também não-A)

O silogismo anterior é, portanto, válido, embora a lei da não-contradição seja violada. Meus parcos conhecimentos de silogística não me permitem verificar se, de facto, o silogismo proposto por Lukasiewicz é válido ou não no quadro da lógica aristotélica; no entanto, se o lógico polonês estiver correto, será imperativo aceitarmos a existência de leis válidas de raciocínio que independem do princípio da não-contradição.
A questão central a que agora chegamos pode ser apresentada da seguinte forma: existem ‘objetos’ em relação aos quais estamos certos da vigência do princípio da não-contradição?
Em sua análise, Lukasiewicz irá destinguir três tipos de objetos: 1) os objetos reais; 2) as “abstrações construtivas”, livres criações do intelecto, como, por exemplo, os objetos da matemática clássica; 3) as “abstrações reconstrutivas”, que são conceitos elaborados para representar coisas reais. No tocante às abstrações construtivas, paradoxos como o que Bertrand Russell (1872-1970) descobriu em 1901, ao considerar a questão do Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo, indicam que, na maioria dos casos, jamais teremos certeza de que não irão violar o princípio da não-contradição. No que concerne às abstrações reconstrutivas, que bem espelham o realidade objetiva, e aos objetos reais, eles parecem estar protegidos da contradição. Com efeito, parece haver certeza de que não existem contradições diretamente perceptíveis na Realidade, pois as negações correlacionadas a juízos de percepção não são elas mesmas perceptíveis, pelo menos em nossa experiência cotidiana.”

“No atual estágio de nosso conhecimento, temos a tendência a admitir como correta a constatação de qualquer contradição ‘real’ só pode ser ‘mediata’, resultado de inferências. Por outro lado, no entanto, não podemos esquecer o fato de que, desde os primórdios da filosofia, é recorrente a tese de que o ‘movimento’ e a ‘mudança’ necessariamente envolvem contradições (a este respeito, podem ser mencionadas as aporias de Zenão de Eléia). Muito embora essas dificuldades lógicas tenham sido sempre eludidas por meio de esquemas teóricos, posto que decorrem de inferências, não parece haver nenhum prova definitiva de que não existam contradições no ‘mundo’ objetivo. Portanto, não existe, também, qualquer prova positiva e inequívoca de que o princípio da não-contradição possui plena vigência em relação aos objetos reais e abstrações reconstrutivas. Contudo, na medida em que podemos verificar que o Princípio é ‘útil’, devemos encará-lo apenas como suposição ou hipótese que norteia e confere forma à indagação científica, regulamentando certas teorizações do Real.

Para Lukasiewicz, pois, o princípio da não-contradição carece de qualquer dignidade lógica a priori; possui, não obstante, um valor ético e ‘prático’ sumamente importante.

Como enfatiza o lógico polonês, se não aceitássemos a validade do Princípio para as atividades ‘práticas’, estaríamos sujeitos a toda sorte de problemas. Assim sendo, para a vida ordinária (atividades comunicativas, sociais, etc.), como Aristóteles já havia assinalado, o princípio da não-contradição constitui pressuposto fundamental. Todavia, é necessário sublinhar que imprescindibilidade prático-ética do Princípio é matéria totalmente distinta de sua validez lógico-teórica. A conclusão de Lukasiewicz a este respeito não deixa de ser assaz perturbadora: a necessidade de se reconhecer como ‘válida’ a lei da não-contradição é tão somente um sintoma da imperfeição ética e intelectual do Homem.”

“O lógico polonês sustenta que Aristóteles percebeu a importância prático-ética do princípio da não-contradição, mesmo que tal constatação não tenha sido claramente formulada em sua obra. Numa época em que o declínio político da Grécia já era patente, o Estagirita tornou-se o fundador e principal promotor de um trabalho filosófico-científico sistemático e de grande rigor. É muito provável que o filósofo grego, especula Lukasiewicz, encarasse todo esse esforço intelectual como um instrumento poderoso para a futura grandeza de sua nação. A negação do Princípio, por conseguinte, deixaria livre o caminho para toda a sorte de falsidades e incertezas, abalando as então frágeis estruturas da investigação científica.

Concluindo seu artigo, Lukasiewicz argumenta que Aristóteles, talvez justamente por ter percebido a fraqueza e a inconsistência de seus postulados, mas tendo plena consciência da importância ‘prática’ que ela envolvia, acabou por estabelecer o princípio da não-contradição como fronteira última que não poderia ser ultrapassada por um discurso racional.”[5]

Até aqui, foi possível acompanhar os diversos pontos de vista sobre os princípios elementares. Se em Chesterton os princípios elementares são dogmas que não se provam, não importando se são auto-evidentes ou não, para Hilbert, a auto-evidência é uma interpretação que não deve influir na formulação dos axiomas, posição essa que Frege discorda, pois assume que os axiomas precisam ser auto-evidentes.
Contudo, ainda existe uma posição completamente diferente de tudo que tem sido proposto até agora.

É que Lukasiewicz defende que até mesmo os axiomas auto-evidentes, considerados mais irrefutáveis, como o princípio da não-contradição, seria na verdade, refutável, e com isso chegou-se ao extremo oposto daquilo que foi afirmado inicialmente: Ao contrário de Chesterton, ao qual afirma que os princípios elementares são dogmas que não se provam, Lukasiewicz diz que até mesmo o princípio da não contradição é refutável e que o conceito de auto-evidência não passa de uma ilusão psicológica por motivos morais. A participação de Chesterton nesta exposição possui inclusive um significado adicional. É que, confirmando num certo sentido as palavras de Lukasiewicz, ele entende haver uma conexão entre moral e verdade, algo que este último nega e aponta, inclusive, como a causa da impressão geral de se achar que o princípio da não contradição é uma verdade necessária.

Se o leitor neste momento pensa que o assunto foi esgotado, que já foi dito tudo que é concebível para ser dito sobre os princípios elementares, os axiomas, engana-se. Por incrível que possa parecer, ainda existe algo dizer. Este algo é a resposta que Olavo deu aos argumentos de Lukasiewicz.

2.1.4. A concepção de Olavo de Carvalho.

“O princípio de identidade é de ordem metafísica e sua contestação, para valer, tem de ser metafisicamente válida. A de Lukasiewicz não é nem pretende ser. Ela pretende apenas demonstrar que na lógica construtivista podemos lidar com objetos contraditórios (coisa que Aristóteles não apenas não contesta, mas afirma resolutamente), e obviamente todos os objetos dessa lógica existem apenas como definições hipotéticas e não têm o mínimo alcance metafísico. A possibilidade de construir raciocínios contraditórios é a base mesma da dialética de Aristóteles, mas Aristóteles jamais cairia na esparrela de confundir a ratio arguendi com a ratio essendi.”

“Quando Lukasiewicz afirma que “existem” objetos contraditórios, a palavra “existência” é aí usada para designar a mera possibilidade de uma coisa ser logicamente construída. É um erro tão primário que não mereceria atenção, se não fosse pela elegante linguagem lógica que o encobre.
Toda a argumentação de Lukasiewicz destinada a impugnar o princípio de identidade subentende a identidade das proposições e conceitos que a expressam. Este é o típico caso de uma regra geral que tenho adotado como critério para o exame crítico de teorias filosóficas: quando o fato mesmo de uma teoria ser enunciada desmente o conteúdo dessa teoria, a teoria pode ser descartada como simples caso de confusão mental. Quando Lukasiewicz afirma que as proposições “A é B” e “A não é B” podem coexistir logicamente, ele não apenas não distingue entre coexistência “in re” e “in verbis” (distinção que está fora do alcance do puro construtivismo), como também subententende como constantes e idênticas a si mesmas as definições de A e de B, pois, se lhes aplicasse o mesmo princípio da coexistência dos contraditórios que acaba de afirmar, não teria duas e sim quatro definições, e assim por diante indefinidamente, o que mostra que sua pretensa contestação do princípio de identidade dá por pressuposta a validade desse mesmo princípio, apenas mostrando que sua negação é pensável, porém pensável, precisamente, como autocontradição que se automultiplica indefinidamente. Toda essa confusão nasce do mau hábito de cortar as ligações da lógica com a ontologia, obtendo uma lógica de pura invenção construtivista da qual se tiram, em seguida conclusões que pretendem ser ontologicamente válidas, introduzindo subrepticiamente no discurso termos como “existência”. Tudo isso é de uma burrice sem par, aliada a uma formidável malícia.”

“Dizer, por exemplo, que a noção de identidade envolve a noção de conjunção, é coisa válida em pura lógica construtivista, mas não em metafísica. Na identidade de um ser consigo mesmo não há conjunção nenhuma. A conjunção entra em jogo apenas na construção da proposição lógica que traduz essa identidade para o microcosmo verbal. Atribuir, retroativamente, à identidade do ser as qualidades formais da proposição que o designa é o mesmo que pentear, em vez dos próprios cabelos, a sua imagem no espelho.
É verdade que Lukasiewicz admite a distinção entre validade lógica e ontológica, mas, na medida em que ele admite também uma lógica não-ontológica que ao mesmo tempo possa servir de critério de veracidade nas ciências, essa admissão fica sem efeito, de modo que ele pode continuar a tirar impunemente conclusões ontológicas de puros formalismos construtivos. Enfim, é uma confusão dos diabos.” [6]

Ao longo deste texto, Lukasiewicz é refutado duplamente: a) ao mostrar precisamente onde foram cometidos os erros em seu argumento de impugnar o princípio da não-contradição b) ao identificar propriedades tais nos axiomas auto-evidentes, que permitem até mesmo que estes sejam distinguidos das outras fórmulas, fundamentando inclusive, o princípio da não-contradição, algo que Lukasiewicz não acreditava ser possível porque provavelmente não tentou imaginar um meio de fazê-lo.

Em relação à refutação “a)”, os erros de Lukasiewicz podem ser divididos em três grupos: confundir a lógica com a dialética, assumir como válido o pressuposto que pretende negar e confundir a representação de uma coisa com a própria coisa representada, abordando formalmente ambas como se tudo fosse uma coisa só.

É justamente o pensamento dialético que justifica a existência de objetos contraditórios, na medida em que estão numa situação intermediária onde suas definições ainda estão sendo depuradas pelos argumentos opostos. A utilidade de um objeto assim, se compreende quando a sua concepção é entendida como um estado qualquer de um progresso no discurso que posteriormente terá suas inconsistências resolvidas, e desta forma deixará de ser um objeto contraditório, para ser um objeto logicamente válido. Considerando isso, o valor dialético de um objeto contraditório, conforme vai justificando sua utilidade no discurso, acaba por ser tomado como um objeto logicamente válido porque o papel que este assume enquanto parte integrante de uma linha de argumentação, passa a receber equivocadamente a mesma legitimidade que se atribui a uma etapa de um raciocínio lógico. Em particular, o paradoxo de Russel, ao invalidar a Teoria Conjuntos como formulada por Cantor, ao mesmo tempo em que tais conjuntos eram um instrumento eficaz para o desenvolvimento da matemática, não favoreceu a legitimidade de objetos não-contraditórios. O verdadeiro significado do Paradoxo de Russel, é que este apenas indicou que o objeto matemático identificado com o Conjunto de Cantor, ainda estava em fase se depuração dialética que terminou por ser concluída, até onde se sabe, na proposta axiomática de Zermelo-Fraenkel.

Quanto ao segundo grupo da refutação “a)”, fica mais claro perceber que o pressuposto que se pretende negar é assumido, quando é analisado uma parte do seguinte silogismo de Lukasiewicz:

B é A (e também não é não-A)
C, que é não-C, é B e não-B
_________________________

C é A (e não é também não-A)

Tomando a fórmula “C, que é não-C, é B e não-B”, é possível abstrair uma mensagem subtendida que afirma que o mesmo C que é definido como sendo não-C, é igual ao C que também é definido como sendo B e em seguida pode ser identificado com o C que é assumido como não-B. Se qualquer um dos C’s citados deixa de ser igual a algum outro C que está incluído na fórmula analisada, violando o princípio da não contradição, então a inferência seguinte não pode ser realizada.

Por ultimo, existe uma associação que está implícita nos argumentos de Lukasiewicz, que é a de tomar as afirmações que são feitas para as relações algébricas da lógica proposicional, e assumi-las como portadora de significado ontológico. É esta postura que tornou plausível a Lukasiewicz fazer manipulações simbólicas, que se formalmente justificariam a negação do princípio da não-contradição, por outro lado, ao se levar em conta o que cada passo da argumentação significa, o resultado seria uma reflexão impossível. Este mesmo erro Lukasiewicz vai tornar mais evidente ao dizer “que a noção de identidade envolve a noção de conjunção”, pois “é coisa válida em pura lógica construtivista, mas não em metafísica. Na identidade de um ser consigo mesmo não há conjunção nenhuma”.

Mas o filósofo Olavo não só demoliu os argumentos de Lukasiewicz. Ele foi adiante e mostrou uma coisa inédita para a maioria dos livros de lógica: que os axiomas auto-evidentes possuem uma propriedade específica que permite distingui-los das outras espécies de formulações lógicas, e que, portanto, não são auto-evidentes por interpretação ou pragmatismo moral, mas são auto-evidentes por um motivo que pode ser detectado mediante o manuseio das fórmulas lógicas!

O método de verificação de Olavo de Carvalho:

“1. “Eu estou aqui”: Esta proposição é auto-evidente sempre que proferida por um sujeito a respeito de si mesmo, não é tautológica e é unívoca.

2. Sua contraditória, “Eu não estou aqui” significa “Não sou eu quem está aqui”, ou “Este lugar não é aqui”? Sendo impossível decidir, a proposição é ambígua, e portanto “Eu estou aqui” é auto-evidente.”[7]

Ou seja, um axioma é auto-evidente porque ao se gerar uma nova fórmula mediante a sua negação, o resultado será uma expressão dúbia incapaz de determinar o que, no axioma original, está sendo negado. Podemos imaginar, para a sentença “Eu estou aqui”, a sua negação sob forma de um cenário em que alguém aponta para um quadro que representa uma pessoa e uma paisagem e diz: “eu não estou aqui”. É a paisagem que não representa o lugar onde ela está ou é a pessoa pintada que não é ela ?

Testando o método de Olavo no princípio da não-contradição.

“1. O princípio de identidade A = A é auto-evidente, não porque tal nos pareça ou porque tenhamos um sentimento de certeza de que é auto-evidente, mas porque sua contraditória, A ¹ A, tem duplo sentido: se A ¹ A, o sujeito da proposição não é igual ao seu predicado, mas, sendo a proposição reversível — o predicado tornando-se sujeito, e o sujeito predicado —, temos então dois sujeitos diferentes, que são ambos sujeitos da mesma proposição: A1 ¹ A2. Logo, a sentença A ¹ A não é unívoca e não pode ser unívoca, donde se patenteia que A = A é auto-evidente.”

“2. A objeção tola de que essa demonstração por sua vez dá por pressuposto o princípio de identidade cai ante a verificação de que a objeção também o dá por pressuposto. O propósito aliás não é aqui “demonstrar” o princípio de identidade mas sim demonstrar a impossibilidade de sua negação unívoca.”[8]

Ou seja, um axioma é auto-evidente porque ao se gerar uma nova fórmula mediante a sua negação, o resultado será uma expressão dúbia incapaz de determinar o que, no axioma original, está sendo negado. Podemos imaginar, para a sentença “Eu estou aqui”, a sua negação sob forma de um cenário em que alguém aponta para um quadro que representa uma pessoa e uma paisagem e diz: “eu não estou aqui”. É a paisagem que não representa o lugar onde ela está ou é a pessoa pintada que não é ela?

Para aquele que tem acompanhado tudo desde o início, comparando cada um dos comentários que se referiam ao conceito de auto-evidência, irá perceber uma abordagem inovadora pelo filósofo Olavo de Carvalho. Chesterton entende como um dogma que não se prova, Hilbert o considera como uma questão de interpretação e Frege defende a sua necessidade. Mas é o filósofo Olavo que propõe um método para obter uma espécie de prova indireta, onde a falsidade da proposição se manifestaria por meio de uma expressão incomunicável, ambígua, cujo significado é dúbio e não permite meios para determinar o quê, especificamente, está sendo dito. Jamais se encontrou em alguma publicação, algo mostrando um esquema que sirva de critério para abstrair uma propriedade específica dos axiomas auto-evidentes, e principalmente, que revele no princípio da não-contradição, uma característica singular fazendo de sua natureza auto-evidente algo de concreto e não apenas uma impressão subjetiva.
Axiomas auto-evidentes são aqueles que quando negados resulta numa forma de indefinição, uma ruptura entre o sujeito e o objeto.

2.2 – Olavo e a Teoria do Sujeito-Objeto.

O filósofo Olavo de Carvalho explicou que a ambigüidade resultante da negação dos axiomas auto-evidentes é um efeito da ruptura entre o sujeito e o objeto. Ocorre que para o filósofo, este efeito não é somente uma curiosidade lógica, mas o sintoma de uma degradação do pensamento filosófico moderno, que ao repetir a ruptura manifestada pela negação dos axiomas auto-evidentes, acaba mostrando ser no fundo tão inconsistente quanto qualquer formula lógica trivialmente absurda, portando inclusive, o sinal inconfundível de todas as contradições. Além disso, na medida em que a defesa da consciência individual é identificada com a preservação da unidade desta mesma consciência, onde, por sua vez, é representada pela unidade do sujeito, do “eu”, unidade esta que se projeta no pressuposto assumido pelo princípio da identidade, o pressuposto que no fim das contas foi abandonado na postura subjetivista da filosofia moderna, sendo este o verdadeiro significado da fraqueza que estaria na raiz de suas nefastas conseqüências; fica caracterizada uma concepção filosófica originalíssima que propõe a existência de um conjunto de nexos que em nenhum outro livro ou publicação no Brasil será, ao menos, sugerido: a da unidade da consciência com a unidade do eu, a unidade do eu com o princípio da identidade, o princípio da identidade com a integridade da relação entre o sujeito e o objeto, e a ruptura da relação entre o sujeito e objeto com a fraqueza epistemológica das filosofias modernas[9].

São quatro, os nexos relatados acima. Mas existe um quinto nexo que pode ser encontrado entre esta ruptura da unidade do sujeito-objeto com o conceito por ele criado chamado de paralaxe cognitiva . A paralaxe cognitiva, um conceito criado pelo filósofo que pode ser definido como “o deslocamento entre o eixo da concepção teórica e o da perspectiva existencial concreta do pensador”[10] em que “as próprias condições existenciais nas quais a teoria brotou e se desenvolveu trazem o desmentido completo do conteúdo da teoria”[11], seria um sintoma de uma patologia espiritual que tem como causa o desdobramento da falha teórica em conceber a possibilidade de conhecimento por meio da separação do sujeito com o objeto, um conseqüência previsível da tendência de se separar o objeto observado de seu foco de observação.

2.3 – Olavo e a filosofia aristotélica

Todo este quadro característico da degradação do pensamento moderno, segundo a tese de Olavo de Carvalho, é especialmente pertinente com a sua interpretação, também original, do papel que o aristotelismo ocupou no desenvolvimento da filosofia grega. A relação entre a doença de espírito e a atitude intelectualmente irresponsável dos sofistas, fica evidente quando em sua apostila é ressaltada a inspiração médica que motivou as teorias de Aristóteles, que teria tomado como seu modelo orientador, o conceito de um organismo vivo, daí se chamar Organon a coleção que reúne seus trabalhos. A unidade de conjunto que permite o funcionamento saudável do organismo serve de referência a uma busca de unidade no conhecimento, e este ideal de unidade servirá por sua vez, de diagnóstico para a crescente incoerência da mentalidade social.

Mas um outro motivo justifica a leitura de Olavo de Carvalho, em seus estudos filosóficos, é a sua capacidade de realizar explicações engenhosas sobre vários aspectos implícitos ou obscuros do tema. Um exemplo disso pode ser lido aqui:

“Em Sócrates, a divisão entre o aspecto existencial e o conceptual era apenas técnica; era um artifício através do qual Sócrates tentava apreender um aspecto mais valioso da realidade, digno de ser investigado. Em Platão, esse aspecto separado por Sócrates é enfatizado como sendo ele mesmo a realidade, ao passo que o aspecto existencial, acidental e transitório é visto como uma espécie de tecido de aparências que nos oculta a verdadeira realidade. A passagem de Sócrates para Platão é bastante nítida; é uma diferença quase abissal. Uma coisa é dizer que vale mais a pena olhar a realidade por determinado aspecto por ser ele mais revelador; outra coisa é dizer que este aspecto é que é real e que o outro é, se não totalmente falso, pelo menos parcialmente ilusório.”

“Podemos resumir tudo dizendo que em Sócrates a divisão dos dois mundos ou aspectos tinha um sentido metodológico, ou gnoseológico, e em Platão passa a ter um alcance ontológico. Um preceito metodológico ensina como você deve investigar as coisas; um princípio ontológico estabelece como as coisas realmente são…
Muitas vezes, na história do pensamento e na história das ciências, aconteceu que preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas.
”[12]

Que pensador é tão ousado a ponto de fazer uma descrição precisa do modo como a epistemologia aristotélica superou a platônica?

Perceba o leitor como este trecho abaixo demonstra uma capacidade de conceber um nexo entre tantos detalhes minuciosos, ao contrário de muitos autores que acreditam que o conhecimento deve ser expresso como uma coleção enciclopédica de dados incoerentes. Costurando idéias e personalidades que vão desde Platão, passando por um historiador da arte até Jung, existe uma tese única e singular que é diferente de todo tipo de concepção estereotipada que é comum em apostilas universitárias e artigos acadêmicos:

“A doutrina dos dois mundos é quase um tendência natural do espírito humano. Hoje vemos, dois mil e tantos anos depois de Platão, que certo platonismo já aparecia na arte do homem das cavernas. Isto foi destacado por um grande historiador da arte, chamado Wilhelm Worringer. Ele observou que o homem primitivo, longe de ser um cidadão perfeitamente integrado na natureza, sentindo-se perfeitamente bem ali, é, ao contrário, um ente aterrorizado pela natureza imensa que o cerca, cheia de imprevistos e ameaças incompreensíveis. Por isso mesmo, a arte dos povos primitivos, longe de ser uma arte naturalista, uma arte que retrate a natureza com toda a sua variedade de formas e cores e seres, é uma arte simplificadora, uma arte geométrica, que expressa um impulso abstrativo muito intenso. Worringer explica assim este estilo de arte: quando o mundo real nos parece demasiadamente complicado ou ameaçador, tendemos a nos refugiar num domínio intelectual puro, para podermos encontrar dentro dele os princípios de organização simplificadora, com os quais mais tarde voltaremos a tentar nos instalar no mundo externo. Como você não está entendendo o que se passa fora, recua para organizar os próprios pensamentos. Depois de os ter organizado, volta à ação exterior. Ora, uma arte de ornamentação puramente geométrica é o que se observa em praticamente todas as sociedades tribais; e uma arte naturalista, na qual o artista se deleita em copiar as formas da natureza, só aparece nas sociedades organizadas, na polis. O naturalismo, a curtição da natureza, são próprios do homem civilizado, e não do primitivo. Para este a natureza é um caos, porque ele não tem poder sobre ela.”

“A partir da hora em que consegue organizar o pensamento humano, e em consequência, a sociedade, coloca uma hierarquia, coloca todo mundo para trabalhar, monta as cidades, cria sistemas de produção e defesa, e afinal sente-se mais seguro e face desta natureza, então sim os aspectos terrificantes dela são atenuados e começam a aparecer os aspectos estéticos. A beleza da natureza só é visível depois que você está a uma boa distância dela.
Esta arte primitiva tem também um sentido religioso, ritual, de modo que as formas puramente geométricas expressam um realidade que, não sendo visível neste mundo, não estando na natureza, é no entanto superior a ele, e na qual o homem se sente protegido contra o caos exterior. Expressa um mundo de relações puramente espirituais, angélicas. São símbolos, signos mágicos ou religiosos. Podemos ver nestes fenômenos descritos por Worringer uma espécie de platonismo primitivo, e aí entenderíamos o platonismo não apenas a filosofia de um certo cidadão, mas como uma tendência constante do espírito humano, e que reaparece sempre que a situação fica caótica e o homem, não conseguindo entender o que se passa, procura em primeiro lugar reordenar o seu mundo interior. Por isto dizia Alain que Platão é o filósofo bom para os que estão em dificuldades interiores, ao passo que Aristóteles é para os cientistas e pesquisadores do mundo.

Num outro contexto completamente diferente, Carl-Gustav Jung, que não levo muito a sério como teórico mas cujas observações clínicas são primorosas, notou que sonhar com objetos geométricos acontece na hora em que a anima está dialogando com o superego (anima é a parte da psique que congrega desejos, aspirações de felicidade; superego é senso imanente de autoridade, legalidade interna), no sentido de obter autorização para fazer alguma coisa que ela deseja. Na hora e que se estabelece este diálogo que visa reordenar a relação entre as leis e os desejos, é que o sujeito começa a sonhar com figuras geométricas.”

“O geometrismo expressa um princípio de reorganização da mente. Por um motivo muito simples: o geométrico forma uma espécie de ponte entre o puramente matemático e o sensível. As matemáticas começam a se desenvolver primeiro pela geometria e só depois chegam à aritmética pura. No tempo de Platão, a geometria já estava bastante desenvolvida e a aritmética só começa a caminhar uns quatro séculos depois. É mais fácil raciocinar matematicamente com figuras geométricas do que com números abstratos. O geometrismo aparece como um diálogo, uma intermediação entre a parte sensível e a parte inteligível, ou como diria Jung, entre a anima e o superego.

O geometrismo é um recuo para uma reorganização interior, um rearranjo entre as exigências da alma humana e o senso de ordem, hierarquia lógica, realidade firme, etc. Visto assim, o platonismo não é a filosofia de Platão, mas um tendência que reaparece a todo momento, sempre que o homem sente a necessidade de refluir desde um situação exterior caótica até um princípio espiritual, interno, invisível ou transcendente de organização. E se é assim, sempre que houver uma situação de caos social, intelectual, moral, ressurgirá algum platonismo, ou seja, uma divisão do mundo em dois estratos, dando mais atenção ao estrato superior interno, representado em geral por figuras e relações de tipo geométrico.

Veremos isto às portas da Renascença, época de muito caos, de dissolução da unidade da civilização cristã, e onde indivíduos mais sensíveis, como Kepler, sentem a necessidade de restaurar a doutrina platônica sob as formas geométricas do cosmos. Segundo Kepler, haveria entre as distintas esferas planetárias as mesmas relações que existem na sequência dos sólidos geométricos platônicos. O desejo de encontrar na realidade externa um princípio geométrico é um desejo de ordenação.”[13]


2.4 – Olavo e a Teoria dos Quatro Discursos

No livro Simetria Perfeita do físico Heinz Pagels, é narrado a estória do William Herschel, o maior astrônomo do século XVIII, que teria começado a sua carreira como jovem músico tocador de oboé, uma tipo de flauta muito comum em orquestras. Num momento qualquer da narrativa, é destacado o modo como as experiências musicais de Herschel teriam lhe ajudado em seu novo interesse pela astronomia: “Ajudado pela irmã Caroline, e pelo irmão, Alexander, fabricou um óptimo telescópio de reflexão numa fundição que construiu em casa. Sem dúvida que a habilidade para os instrumentos musicais lhe foi muito útil na construção do instrumento de precisão. Com auxílio do telescópio, descobriu um novo planeta – Urano –, que, inicialmente julgou ser um cometa.”[14]. Em outra parte desta mesma narrativa pode ser encontrado o seguinte: “A paixão pela ciência e a paixão pela música eram movidas pelo mesmo desejo: dar realidade à beleza de uma imagem do mundo.”[15].

Isto é um exemplo de conexão entre duas atividades humanas que não são consideradas relacionadas uma com a outra, mas cujo nexo foi sugerido por se suspeitar que de alguma forma, existe uma relação entre ambas. Se este conceito não passava de uma trivialidade subjetiva, superficial, na Teoria dos Quatro Discursos ganha contornos filosóficos mais precisos, quando este estudo emerge sob forma de uma concepção aristotélica, que numa ótica inovadora, o velho legado do estagirita deixa de ser um coleção de trabalhos individuais para se constituir numa teoria unificada do conhecimento[16].

Mas a grande novidade, é que ao estabelecer vínculos entre as várias modalidades do pensamento humano – Poética, Retórica, Dialética e Analítica (lógica) –, é revelado um histórico do desenvolvimento da criatividade intelectual que permite um grau de compreensão da gênese do saber como jamais foi abordado por qualquer dos filósofos da ciência que atualmente são lidos e celebrados. Cada discurso serve de degrau para a concepção do discurso seguinte, este é o segredo. E a explicação deste segredo fornece o entendimento para um novo sentido de coerência que explica toda a trama: a estrutura da obtenção do conhecimento – a unidade aristotélica dos quatro discursos que é o modo natural de se conhecer –, se torna uma sabedoria perdida porque em algum momento na história do mundo, a mentalidade social passou a optar pela anulação da consciência, que com o tempo foi se expressando na evolução da idéias sob forma de ruptura do sujeito com o objeto, ruptura esta que é representada pelo formalismo lógico através da violação do princípio da identidade, que por sua vez está na raiz do sintoma da degradação progressiva da filosofia, cujo resultado final é a burrice humana transformada em ideologia.

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Notas:

[1] http://www.chesterton.org/gkc/philosopher/v1n6.gkcessay.hm

[2] KRAUSE, Décio –Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (Editora Pedagógica e Universitária), 2002, p. 3-4.

O livro pode ser baixado por este link:
http://heliopereiriano.4shared.com/file/11706146/8f84ec3d

[3] KRAUSE, Décio –Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (Editora Pedagógica e Universitária), 2002, p. 5.

[4] KRAUSE, Décio – Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (Editora Pedagógica e Universitária), 2002, p. 6-7.

[5] O texto integral pode ser encontrado no seguinte link: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/identidade.htm

[6] Idem

[7] Idem

[8] Idem

[9] http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/sujobj.htm

[10] http://www.olavodecarvalho.org/semana/02152003globo.htm

[11] http://www.olavodecarvalho.org/semana/060424dc.html

[12] http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/pensaris3_1.htm

Propus uma explicação, por sua vez, sobre o porquê desta tendência “em que preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas”: este equívoco é inspirado pelos procedimentos matemáticos, onde os preceitos metodológicos e juízos ontológicos acabam sendo uma coisa só. O conjunto total de passos para obter a solução de uma equação, e a solução desta mesma equação, freqüentemente são tratados como se fosse uma coisa única, uma indistinção que se justifica na maioria dos casos.

[13] http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/pensaris3_1.htm

[14] PAGEL, Heinz R. Simetria perfeita. Trad: Henrique Leitão e Paulo Ivo Teixeira, Gradiva. Lisboa,1985. pp. 25

[15] Idem.

[16] http://www.olavodecarvalho.org/livros/4discursos.htm

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