Destaque

As garras da Esfinge – René Guénon e a islamização do Ocidente

Olavo de Carvalho
Verbum, Ano I, Números 1 e 2, Julho-Outubro de 2016

I

As transformações históricas e espirituais profundas que vão determinar o futuro da humanidade estão tão distantes da nossa mídia, da nossa vida universitária e, de modo geral, de todos os debates públicos neste país, que com certeza aquilo que vou dizer neste artigo parecerá estratosférico e alheio à realidade imediata.

O doente incurável que geme de dor num leito de hospital dificilmente se interessará, nessa hora, pelas controvérsias médicas, bioquímicas e farmacológicas que se desenrolam em países longínquos e em idiomas que ele desconhece, mas das quais poderá vir, um dia, a cura da sua doença. O que mais de perto diz respeito ao seu destino lhe parece distante, abstrato e alheio à sua dor.

Os que se interessam pelo futuro do Brasil deveriam prestar atenção ao que vou lhes dizer aqui, mas será muito difícil fazê-los ver que que uma coisa tem algo a ver com a outra.

Vou começar analisando a resenha que um autor desconhecido neste país  faz do livro de outro autor igualmente ignorado por aqui.

O livro é False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism, and the Quest for a One-World Religion, de Lee Penn (Sophia Perennis, 2005), que já recomendei muitas vezes mas poucos leram, por ser um calhamaço de documentos longos e chatíssimos. O resenhista é Charles Upton, autor de The System of the Antichrist (id., 2001), que foi menos lido ainda, já que o recomendei com menos ênfase e constância. A resenha foi publicada num livro mais recente de Upton, Findings: In Metaphysic, Path, and Lore, A Response to the Traditionalist/Perennialist School (id., 2010) e reproduzida na revista eletrônica da editora, http://www.sophiaperennis.com/discussion-forums/sophia-perennis-book-reviews/false-dawn-the-united-religions-initiative-globalism-and-the-quest-for-a-one-world-religion/.

O livro de Lee Penn descreve e documenta com abundância de fontes primárias a formação e desenvolvimento de uma religião biônica  mundial, com todas as características de uma paródia satânica, sob os auspícios da ONU, do governo americano, de praticamente toda a grande mídia ocidental e de um punhado de megafortunas. Iniciado em 1995 por William Swing, bispo da Igreja Episcopal, com o nome de United Religions Initiative (URI, v. http://www.uri.org), embora extra-oficialmente existisse desde muito antes (remontando ao Lucis Trust fundado em 1922 por Alice Bailey), o empreendimento, sustentado por recursos financeiros incalculavelmente vastos e apoiado por todo um cast de estrelas do show business e da política, conquistou até o apoio informal do Papa Francisco (v. http://remnantnewspaper.com/web/index.php/articles/item/511-pope-francis-and-the-united-religions-initiative).

Com o lindo objetivo de criar “um mundo de paz, sustentado por comunidades engajadas e interconectadas, comprometidas com o respeito à diversidade, com a resolução não-violenta dos conflitos e com a justiça social, política, econômica e ambiental”, o movimento reúne, em festivas celebrações ditas “ecumênicas”, católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas, animistas, espíritas, teosofistas, ba’hais, sikhs, adeptos da New Age, da Wicca, do satanismo, do Reverendo Moon, dos Hare Krishna e de qualquer culto indígena ou ufológico que se apresente, dando a tudo um sentido de fraternidade universal que dissolve entre sorrisos de condescendência mútua as mais óbvias e insuperáveis incompatibilidades entre essas diversas crenças.

Todas as religiões e pseudo-religiões somadas, fundidas e mutuamente neutralizadas reduzem-se assim a um instrumento auxiliar do projeto globalista voltado à criação de um Governo Mundial.

Grosso modo, a ideologia que gruda uns nos outros esses elementos heterogêneos e inconciliáveis é o universalismo low brow da “Nova Era”, que, copiando mal e mal a linguagem da tradição hindu, proclama serem todas as religiões nada mais que aspectos locais e acidentais assumidos por uma Revelação Primordial única, donde se conclui que, por este ou aquele caminho, todo mundo chegará mais dia, menos dia, aos mais altos estágios da realização espiritual humana ou mesmo sobre-humana.

Essa ideologia teve precursores no século XIX, como Allan Kardec, Helena Petrovna Blavatski, a célebre teosofista e – literalmente – batedora de carteiras, Jules Doinel, fundador da Igreja Gnóstica francesa (1890), Gerard Encausse, mais conhecido como “Papus”, Jean Bricaud e, de modo geral, todos os componentes do movimento que viria a se chamar “ocultista”.

Esse “universalismo”, que no início do século XX soava apenas como uma fantasia exótica, acabou por penetrar tão fundo no senso comum das multidões que hoje a equivalência de todas as religiões em dignidade e valor é um dogma subscrito por toda a grande mídia mundial, pelos parlamentos, pelas legislações da quase totalidade dos países e pela maioria das próprias autoridades religiosas.

Longe de ser um fenômeno espontâneo, essa radical transformação das crenças coletivas reflete o trabalho incessante dos onipresentes agentes da URI, a cuja interferência nenhuma organização socialmente relevante está imune.

Não é necessário, portanto, enfatizar a importância desse projeto dentro dos planos globalistas, nem, é claro, é possível negar o valor do trabalho de Lee Penn ao reunir e ordenar documentação mais que suficiente para provar a unidade de inspiração e de estratégia por trás de fenômenos que ao observador leigo podem parecer dispersos e inconexos.

O resenhista, Charles Upton, enaltece os méritos do livro e acrescenta-lhe um esclarecimento que, diz ele, já havia transmitido pessoalmente ao autor, com total concordância deste.

O esclarecimento é este: Não se deve confundir o “universalismo” paródico da Nova Era e da URI com o universalismo high brow da escola dita “tradicionalista” ou “perenialista” inspirada em René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda K. Coomaraswamy e seus continuadores.

É verdade. São muito diferentes. Com muita antecedência, o fundador da escola, René Guénon, já havia submetido a devastadoras análises críticas toda a ideologia “ocultista” que décadas mais tarde viria a constituir a base doutrinal – se cabe o termo — da “Nova Era” e da URI.

Membro e até bispo da Igreja Gnóstica na juventude, Guénon logo saiu atirando e não fez prisioneiros. Nem um pouco mais intactos ficaram o espiritismo de Allan Kardec, a teosofia de Madame Blavatski e mil e um outros movimentos nos quais Guénon via a encarnação mesma daquilo que ele chamava “pseudo-iniciação” e “contra-iniciação” – a primeira constituindo a imitação simiesca da espiritualidade, a segunda a sua inversão satânica.

Na verdade o contraste entre o universalismo da URI e o da corrente guénoniana-schuoniana vai muito além da mera diferença entre low brow e high brow, embora essa diferença seja patente aos olhos de quem os compare.

De um lado vemos um pastiche de sincretismos inconseqüentes reforçados por alguma retórica humanitária sentimentalóide ou futurista (ora “progressista”, ora “conservadora”, para agradar a todos) e adornado no máximo, aqui e ali, pela adesão superficial de algum escritor da moda, como Aldous Huxley e Allan Watts.

Do outro lado, construções intelectuais sofisticadas, uma compreensão profunda e organizada dos símbolos religiosos e esotéricos  de todas as tradições, um domínio cabal das fontes reveladas e uma técnica comparatista que se aproxima, em precisão, quase que de uma ciência exata. Por acréscimo, algumas das análises mais consistentes da crise civilizacional do Ocidente nas suas várias expressões: cultural, social, artística etc.

A diferença salta aos olhos de qualquer leitor culto. Em contraste com a mixórdia sincretística da “Nova Era”, temos aqui um universalismo no sentido forte da palavra, uma visão abrangente e ordenadora que não somente apreende com extrema agudeza os pontos comuns entre as várias cosmovisões espirituais, mas dá a razão e fundamento da sua diversidade, de modo que a essa articulação do uno e do múltiplo se subordina, na verdade, toda a história universal das idéias e das crenças, das teorias e práticas, numa palavra: tudo o que o ser humano fez e pensou na sua caminhada sobre a Terra. Não há praticamente nada, nenhum fenômeno, nenhum pensamento, nenhum acontecimento fausto ou infausto, que de algum modo não encontre alguma explicação “perenalista” eficiente e persuasiva, quando não irrefutavelmente certa.

Do ponto de vista do buscador comum que, proveniente dos meios revolucionários, modernistas e ateísticos, é alertado para a importância dos temas “espirituais” e, após uma ilusão temporária com a “Nova Era”, se desilude com a sua superficialidade e sai em busca de alimento mais nutritivo, a passagem ao tradicionalismo de Guénon e Schuon é um upgrade intelectual formidável, um impacto desaculturante, quase uma transfiguração interior que repentinamente o isolará do ambiente mental em torno, marcado a um tempo pelo descrédito das religiões e pela vulgaridade sem fim do ocultismo onipresente, e o deixará sozinho, face a face com a sua consciência. Cumpre-se assim, na escala individual, a célebre profecia emitida por um biógrafo anônimo de René Guénon logo após a morte do mestre:

“Chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo contato material que possa ajudá-lo em sua resistência interior, terá de encontrar em si mesmo, e só nele mesmo, o meio de aderir firmemente, pelo centro de sua existência, ao Senhor de toda Verdade.”1

Raros, raríssimos são os que chegam a esse ponto – a maioria vai tombando pelo caminho –, mas, para aquele que chega, é difícil resistir, então, ao impulso de fazer contato pessoal com os círculos guénonianos e schuonianos, em busca de alívio, apoio e orientação. É por esse processo de seleção espontânea que se forma a “elite intelectual” que, como veremos adiante, Guénon tinha em vista no livro Oriente e Ocidente, de 1924.

Pois é evidente que, entre as várias cosmovisões em luta, a mais abrangente, que absorve e explica todas as outras, está no topo. É o cume da consciência de uma época, o nec plus ultra  da inteligência e do inteligível.

O que confere ainda mais autoridade ao ensinamento perenialista é a afirmação reiterada de seus expositores, de que ele não é invenção sua, mas o mero traslado, em linguagem teórica atual, de revelações imemoriais que remontam a uma Fonte originária única, a Tradição Primordial. Afirmação idêntica, na superfície, à dos próceres da “Nova Era”, mas agora fundamentada numa superabundância de provas documentais, de argumentos racionais, de toda uma ciência organizada do simbolismo universal e do comparatismo, da qual nascem tours de force intelectualmente deslumbrantes como os Symboles de la Science Sacrée do próprio René Guénon2 e A Treasury of Traditional Wisdom, de Whitall N. Perry,3 um dos mais próximos colaboradores de F. Schuon nos EUA, monumental coletânea de textos sacros organizados de modo a ilustrar, acima de qualquer dúvida razoável, a convergência essencial das doutrinas e símbolos das grandes tradições religiosas e espirituais, a Unidade Transcendente das Religiões como a denominava Schuon no título de um livro que ninguém menos que T. S. Eliot considerou o maior feito de todos os tempos no campo da religião comparada.

Toda semelhança com o “universalismo” da URI é enganosa.

Em primeiro lugar, todos os perenialistas, sem exceção, insistem que as doutrinas, símbolos e ritos das várias tradições em particular, malgrado apontem sempre para uma Realidade suprema que é a mesma em todos os casos, têm uma integridade própria, não podem ser objeto de fusão, mescla ou sincretismo. Ou seja: não podem sofrer o tipo de operação unificante que, precisamente, caracteriza a “Nova Era”.

Em segundo lugar, nem tudo o que se apresente com o nome de religião, espiritualidade, esoterismo ou coisa parecida pode entrar nessa síntese. Bem ao contrário, é comum a todos os perenialistas a distinção precisa, rigorosa e até intolerante entre Tradição, Pseudo-Tradição e Antitradição. Boa parte do material compactado na “Nova Era” entra nestas duas últimas categorias e, longe de integrar a unidade da fonte primordial, representa a paródia ou negação de tudo o que vem dela.

Em terceiro e mais importante lugar, a unidade transcendente das religiões é mesmo transcendente, não imanente. As religiões aí estão unificadas apenas pelo topo, pelo cume e núcleo vivo das suas concepções doutrinais, e não pela variedade irredutível das suas liturgias, dos seus códigos morais e das suas diferentes “vias” de realização espiritual. E onde, precisamente, está esse núcleo e topo? Está nas suas respectivas concepções metafísicas, que de fato são convergentes, como a simples coletânea organizada por Whitall Perry basta para demonstrá-lo acima de toda possibilidade de controvérsia. Nesse sentido, as religiões e tradições espirituais podem ser vistas, sem distorção, como adaptações de uma mesma Verdade Primordial às condições histórico-culturais, lingüísticas e psicológicas dos vários tempos, lugares e civilizações. Os vários exoterismos refletiriam, nas suas diferenças, a unidade de um mesmo esoterismo primordial. Os homens que chegaram a apreender claramente a unidade desse esoterismo superaram, intelectivamente, a diferença entre as religiões, mas, como não são feitos de puro intelecto e têm ainda uma existência histórico-temporal de pessoas de carne e osso, continuam subordinados cada um à sua respectiva tradição religiosa, sem poder fundi-la ou misturá-la com qualquer outra. O exemplo clássico é o grande mestre sufi Mohieddin Ibn’ Arabi. Afirmando explicitamente que seu coração podia assumir todas as formas – a do brâhmana hindu, a do rabino cabalista, a do monge cristão ou qualquer outra –, ele continuava, na sua vida de indivíduo real e concreto, inteiramente fiel à mais estrita ortodoxia islâmica.

Mas é aí que começam os problemas.

II

Desde logo, essa concepção exige, ao lado da diferenciação “horizontal” entre as várias tradições no tempo e no espaço, uma distinção “vertical”, ou hierárquica, entre as partes “inferiores” e “superiores” de cada uma. As “inferiores”, ou exotéricas, são historicamente condicionadas e por elas as tradições de afastam umas das outras até o ponto da hostilidade mútua e da total incompatibilidade. As partes “superiores”, esotéricas, refletem a eternidade imutável da Verdade, onde todas as tradições convergem e se encontram.

Há, em suma, uma religião popular, feita de ritos e normas de conduta, igual para todos os membros da comunidade, e uma religião de elite, apenas para as pessoas “qualificadas”, que por trás dos símbolos e das leis podem apreender o “sentido” último da revelação. Pela prática dos ritos de agregação que os integram na tradição religiosa e pela obediência as normas, os homens do povo obtêm a “salvação” post mortem das suas almas. Por meio de ritos de iniciação, os membros da elite obtêm já em vida, e muito acima da mera “salvação”, a realização espiritual que os arrebata do simples “estado individual” de existência para transfigurá-los na própria Realidade Última, ou Deus.

É bom não falar muito dessas coisas perante o público em geral, que pode escandalizar-se ante a decifração de um mistério que deve permanecer opaco para a sua própria proteção espiritual. É bem conhecida a história do sufi Mansur Al-Hallaj (858-922), que após ter chegado à última “realização espiritual”, saiu gritando “Ana al-Haqq!” (“Eu sou a Verdade”) e foi decapitado pelas autoridades exotéricas. Al-Haqq não quer dizer somente “a verdade” no sentido genérico e abstrato. É um dos noventa e nove “Nomes de Deus” impressos no Corão, de modo que a declaração de Al-Hallaj equivalia literalmente a “Eu sou Deus”. Do ponto de vista da ortodoxia esotérica, isso resultava em negar o princípio corânico da unicidade de Deus, constituindo um crime que devia ser castigado com a morte. Mais tarde os juristas islâmicos admitiram que afirmações proferidas por sufis em estado de “arrebatamento místico” escapavam à alçada da justiça comum e deviam ser aceitas como mistérios indecifráveis.

No sentido explícito, legal e oficial, a distinção entre exoterismo e esoterismo só existe numa única tradição: o Islam. Corresponde à distição entre shari’ah e tariqat. De um lado, a lei religiosa obrigatória para todos; de outro, a “via” espiritual, de livre escolha, só para as pessoas interessadas e dotadas. A aplicação dessa distinção a todas as outras tradições é meramente sugestiva ou analógica – uma figura de linguagem e não um conceito descritivo apropriado. Com isso o edifício inteiro do “perenialismo” começa a balançar um pouco.

Existem, por exemplo, exoterismo e esoterismo na tradição hindu, justamente aquela de cujo vocabulário René Guénon se serve mais freqüentemente, por julgar que o hinduismo alcançou clareza máxima na exposição da doutrina metafísica? Evidentemente não. A distinção de castas é algo de completamente diverso. Primeiro, porque o ingresso na casta superior não é de livre escolha: o sujeito nasce shudra, vaishia, kshatyia ou brâhmana e assim permanece para sempre. Segundo, porque acidentalmente membros das castas inferiores podem alcançar os mais altos níveis de realização espiritual sem mudar de casta. Terceiro, porque os ritos da casta superior, ou brâhmana, nada têm de secreto ou discreto: qualquer zé-mané pode conhecê-los, só não tem a autorização de praticá-los.

Existe um “esoterismo cristão”? A coisa, aí, complica-se formidavelmente. Existiram e existem, aqui e ali, organizações esotéricas que se professavam cristãs e que, por meio de ritos especiais, diferentes dos sacramentos da Igreja, transmitem iniciações. A Companheiragem, os Fedeli d’Amore, a Maçonaria e a Ordem Templária são exemplos. Mais modernamente, inúmeros ocultistas, como Madame Blavatski, Rudolf Steiner e Georges Ivanovich Gurdjieff apresentaram seus ensinamentos como modalidades de esoterismo cristão.

Mas restam alguns fatos que bastam para dar por terra com essas pretensões.

Desde logo, não há traços de nenhuma organização esotérica cristã nos primeiros dez séculos da Igreja. Em segundo lugar, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou taxativamente: “Nada ensinei em segredo.” Mesmo Suas parábolas, cujo sentido não era imediatamente evidente a todos, eram ditas em público, não a um círculo reservado. Como é possível então que o núcleo do ensinamento do Salvador fosse conservado em segredo durante dez – ou vinte — séculos?

Em contraste, no Islam a diferença de exoterismo e esoterismo aparece nitidamente desde o primeiro momento. Ao ver um grupo de companheiros do Profeta praticando certos ritos estranhos, diferentes das cinco preces diárias, os fiéis foram perguntar a ele de que se tratava. Ele explicou que eram devoções voluntárias, meritórias mas não obrigatórias. Esse foi o primeiro sinal da existência do tasawwuf ou “sufismo”, o esoterismo islâmico.4

Em terceiro lugar, e mais decisivo: os sacramentos da Igreja não são meros “ritos de agregação”. São iniciáticos de pleno direito. Não dão acesso somente à comunidade de fiéis – ou à sua “egrégora” ou  consciência coletiva –, mas, Deo juvante, ao conhecimento mais íntimo da Realidade Suprema a que um ser humano pode aspirar. “Não sou mais eu que existo”, diz o Apóstolo, “é Cristo que existe em mim”.

João Paulo II, no seu Catecismo, declara explicitamente que os sacramentos são os passos “da iniciação cristã”, e não é concebível que, num texto tão formalmente doutrinário, usasse o termo como mera figura de linguagem.

O Pe. Juan González Arintero, em dois livros memoráveis que provavelmente constituem o cume da literatura mística no século XX, demonstra com abundância de argumentos e exemplos que a via dos sacramentos foi aberta justamente para dar a todos, sem exceção, o acesso aos mais altos patamares da realização espiritual.5 A distinção de exotéricos e esotéricos só serve aí como metáfora  para designar o diferente aproveitamento espiritual obtido por este ou aquele indivíduo conforme suas aptidões, seu empenho e os movimentos da Graça divina.

Todos os cristãos que receberam os sacramentos são, portanto, iniciados, no sentido estrito que o perenialismo dá a essa palavra. A diferença entre os vários resultados espirituais obtidos pode ser explicada por um conceito desenvolvido pelo próprio René Guénon, o de iniciação virtual. Nem todos os ritos de iniciação produzem imediatamente os resultados espirituais que lhes correspondem. Esses efeitos podem permanecer retidos por muito tempo até que algum fator externo – ou a evolução do próprio recipiente — os convoque à plena manifestação.

Para complicar um pouco mais as coisas, o próprio F. Schuon reconheceu que os sacramentos cristãos tinham alcance iniciático. Para vocês avaliarem o quanto essa questão é espinhosa para a escola perenialista, basta lembrar que, publicada a opinião de Schuon a respeito, Guénon reagiu com indignação e fúria, chegando a romper relações com o seu discípulo e continuador.6

Guénon continuou teimando que os sacramentos cristãos eram apenas ritos de agregação e que autênticas iniciações só existiram em determinadas organizações secretas ou discretas, como a Companheiragem ou a Maçonaria. Para sustentar essa tese, inventou uma das hipóteses históricas mais artificiosas que alguém já viu: o cristianismo teria surgido inicialmente como um esoterismo, mas, em vista da decadência geral da religião greco-romana, teria sido forçado ex post facto a popularizar-se, acabando por reduzir-se a um exoterismo. Não há absolutamente nenhum sinal de que isso jamais tenha acontecido. Bem ao contrário, Jesus falou abertamente às multidões desde o início da sua pregação, e os sacramentos não sofreram nenhuma mudança substancial de forma ou conteúdo ao longo dos tempos. Quaisquer que possam ter sido os seus erros em outros domínios, nesse ponto Schuon estava com a razão.

É também só como figura de linguagem que a distinção de exoterismo e esoterismo – ou de ritos de agregação e de iniciação – pode se aplicar ao judaísmo, já que os cultores de mistérios cabalísticos ali não são outros senão os próprios sacerdotes do culto oficial.

Tão inapropriada é a aplicação dessa dupla de conceitos ao território extra-islâmico, que membros da própria escola perenianista acabaram tendo de reconhecer a existência de iniciações “exo-esotéricas” e até “exotéricas” ao lado das propriamente “esotéricas”,7 o que já basta para mostrar que esses conceitos servem para pouca coisa.

A falta de argumentos razoáveis e a reação desproporcional de Guénon ante o que poderia ter se limitado a uma discussão entre amigos  sugerem que nesse episódio ele podia estar escondendo alguma coisa. Não podendo falar claro, apelou a uma hipótese absurda e tentou reduzir o interlocutor ao silêncio mediante uma exibição de autoridade, que Schuon educadamente rejeitou.

Qual a razão pela qual Guénon teria escolhido enquadrar à força  todas as tradições numa dupla de conceitos que não se aplicava apropriadamente a nenhuma delas exceto o islamismo em particular? Por que esse homem, tão criterioso em tudo o mais, se permitiu tamanha arbitrariedade, colocando-se assim numa posição vulnerável que se viu posta em risco tão logo Schuon levantou a questão das iniciações sacramentais? Quase com certeza teve, para fazê-lo, motivos que, ao menos naquele momento, não podiam ser discutidos abertamente.

Mas antes mesmo de esclarecer esse ponto é preciso levantar uma outra questão.

III

Que as tradições materialmente diferentes convergem na direção de um mesmo conjunto de princípios metafísicos é algo que não se pode mais colocar seriamente em dúvida. A tese da Unidade Transcendente das Religiões é vitoriosa sob todos os aspectos.

Só há um detalhe: Que é propriamente uma metafísica? Não uso o termo como denominação de uma disciplina acadêmica mas no sentido muito especial e preciso que tem nas obras de Guénon e Schuon. Que é uma metafísica? É a estrutura da realidade universal, que desce desde o Primeiro Princípio infinito e eterno até os seus inumeráveis reflexos no mundo manifestado, através de uma série de níveis ou planos de existência.

O fato de que ela seja essencialmente a mesma em todas as tradições indica que existe uma percepção normal da estrutura básica da realidade, comum a todos os homens de qualquer época ou cultura.

Essa percepção exige uma consciência clara ou ao menos um pressentimento da escalaridade do real, isto é, das distinções entre diferentes planos ou níveis de realidade, desde os objetos sensíveis da percepção imediata até a Realidade última, o Princípio absoluto, eterno, imutável e infinito, passando por uma série de graus intermediários: histórico, terrestre, cósmico, angélico etc.

A perfeita submissão da subjetividade humana a essa estrutura está subentendida em todas as tradições como uma conditio sine qua non da vida religiosa e, mais ainda, da realização espiritual. Sua negação, mutilação ou alteração é a raiz de todos os erros e desvarios da humanidade.

É por isso que F. Schuon propõe uma distinção entre heresia essencial e heresia acidental. A palavra “heresia” vem de uma raiz grega que tem as acepções de “escolher” e “decidir”. Um heresiarca é alguém que, por vontade própria, escolhe da verdade total as partes que lhe interessam e ignora as demais.

Heresia acidental, segundo Schuon, é a negação, mutilação ou alteração dos cânones de uma tradição em particular, como por exemplo o monofisismo na Cristandade (a teoria de que Jesus tinha só a natureza divina, não a humana) ou o associacionismo no Islam (associar Deus a outros seres).

Heresia essencial é a negação, mutilação ou alteração da própria estrutura da realidade – um erro, portanto, que seria condenado não apenas por esta ou aquela tradição em particular, mas por todas elas. O materialismo ou o relativismo, por exemplo.

Tudo isso está muito bem, mas há um problema lógico. Se a metafísica é comum a todas as tradições, como pode ser o topo e a suprema perfeição de cada uma delas? Por definição, a perfeição de uma espécie não pode estar no seu gênero: tem de estar na sua diferença específica. A perfeição do leão e da pulga não pode residir no simples fato de que ambos são animais.

É admissível que, na escalada iniciática do indivíduo, a chegada à Realidade Suprema, que o eleva acima do seu estado individual e o absorve no próprio Ser da divindade, é a culminação dos seus esforços. Ela corresponderia também, segundo o perenialismo, ao momento em que as diferenças entre as tradições espirituais são definitivamente transcendidas, sem deixar de continuar valendo para a existência empírica do iniciado no plano terrestre. É Mohieddin Ibn ‘Arabi sendo cristão, zoroastriano ou judeu “por dentro” sem deixar de ser ortodoxamente muçulmano “por fora”.

Mas, por isso mesmo, a metafísica só pode ser a culminação das tradições enquanto tais se aceitarmos uma indistinção entre a ordem do Ser e a ordem do conhecer, que, segundo ensinava Aristóteles, são inversas. O topo da escalada iniciática não pode ser, ao mesmo tempo, a culminação das religiões porque, sendo comum a todas elas, é apenas o gênero a que pertencem e não a suprema perfeição específica de cada uma.

Mais razoável seria supor que a Tradição primordial é a base comum não só a todas as tradições espirituais, mas a todas as culturas e, no fim das contas, ao núcleo de inteligência sã presente em todos os seres humanos. Partindo dessa base, ou origem, as várias tradições se desenvolvem em direções diferentes, cada uma buscando refletir mais perfeitamente o Princípio absoluto e dar aos homens os meios de retornar a Ele. Nesse sentido, a culminação de cada tradição não é o Princípio em si, mas o sucesso que obtém na operação de retorno. E não há por que supor que, das várias espécies, todas expressem igualmente bem a perfeição do gênero: as pulgas e os leões são igualmente animais, mas nem por isso a pulga expressa a perfeição da animalidade tão bem quanto o leão, para nada dizer do ser humano.

Schuon afirma que a pretensão de cada religião de ser “melhor” que as outras só se justifica pelo fato de que todas elas são “legítimas”, isto é, refletem a seu modo a Tradição Primordial, mas que vistas na escala da eternidade e do absoluto, essa pretensão se revela ilusória.8 No entanto, se a perfeição de uma espécie não pode residir apenas no seu gênero, e sim na sua diferença específica, não há nenhum motivo para dar por provado que todas as espécies representem por igual a perfeição do gênero. Todas as religiões remetem a uma Tradição Primordial, OK, mas todas a representam igualmente bem? A pergunta é inteiramente legítima, e em parte alguma a escola perenialista lhe ofereceu – ou tentou oferecer — uma resposta aceitável. Na verdade, nem colocou a pergunta. Será que até nessas altas esferas encontraremos o fenômeno da “proibição de perguntar”, que Eric Voegelin discerniu nas ideologias de massa?

IV

“A geração da Escola Tradicionalista reunida em torno de Frithjof Schuon – escreve Charles Upton – apresentou e revelou as religiões em suas essências celestiais, sub specie æternitatis.”9

Se as essências celestiais das religiões são substancialmente a mesma, a diferença entre elas é puramente terrestre e contingente, as formas particulares de cada uma nada tendo de sagrado em si mesmas  sem a seiva que recebem da Tradição Primordial: só esta, a Religio Perennis,10 é verdadeira em sentido estrito. As demais são símbolos ou aparências imperfeitas de que ela se reveste na suas várias encarnações terrestres.

Mas – prossegue o mesmo Upton – “essas revelações são consideradas ramos da Tradição Primordial, mas esta Tradição não é presentemente vigente enquanto sistema religioso; não é uma religião que possa ser praticada. Os únicos caminhos espirituais viáveis existem sob a forma – ou dentro – das presentes revelações viventes: Hinduísmo, Zoroastrismo, Budismo, Judaísmo, Cristianismo e Islam.”11

Mas esses caminhos levam somente à “salvação” numa vida post mortem. Para subir um pouco mais alto já na vida presente é preciso, sem abandoná-los, filiar-se a uma organização esotérica e praticar, além dos ritos e mandamentos da religião popular, alguns ritos e mandamentos especiais, de caráter iniciático.

Dito de outro modo, a religião popular é um atestado de qualificação exigido do postulante na entrada do caminho iniciático. Para o muçulmano, isso não é um grande problema. Embora tenham uma existência à parte, as tariqas (turuq, em árabe) são em geral reconhecidas como legítimas pela religião oficial, de modo que o fiel interessado pode transitar livremente entre os dois tipos de práticas.

Para o hindu, também não é problema: ainda que inexistindo propriamente um esoterismo hindu, o hinduísmo aceita e absorve todas as práticas de outras religiões, de modo que – descontados os conflitos políticos entre hinduístas e muçulmanos – nada impede que um hindu se filie a uma tariqa, à Maçonaria, a uma Tríade chinesa ou a qualquer outra organização esotérica sem mudar de estatuto na sua sociedade de origem.

No caso de um católico, porém, a coisa se complica. Segundo Guénon, todas as organizações iniciáticas cristãs foram desaparecendo depois da Idade Média, deixando os pobres fiéis limitados a um exoterismo espiritualmente capenga. Sobraram só uns resíduos de organizações extintas e… a Maçonaria.

Acontece que uma sentença do Papa Clemente XII, em 1738, condenou à excomunhão automática todo fiel católico que se filiasse à Maçonaria (ou a qualquer outra sociedade secreta). A decisão foi reforçada pelo Papa Leão X em 1890 e formalizada pelo Código de Direito Canônico de 1917. O novo Código do Papa João Paulo II, em 1983, falava somente em “sociedades secretas”, sem mencionar nominalmente a Maçonaria, o que por breves instantes deu a impressão de que a excomunhão fora suspensa, até que a Congregação para a Doutrina da Fé, em novembro daquele mesmo ano, esclareceu que não era nada disso, que a proibição de ingressar na Maçonaria continuava em vigor.

Isto é, o fiel católico que lesse René Guénon e acreditasse nele, vendo na perda da dimensão iniciática a raiz de todos os males do mundo moderno, era espremido contra a parede pela opção entre desistir de vez do esoterismo, contentando-se com o exoterismo cada vez mais reduzido a um moralismo exterior, e aceitando portanto ser cúmplice da degradação espiritual moderna, ou então buscar uma iniciação maçônica e ser excomungado, isto é, perder a filiação exotérica que, segundo o mesmo Guénon, era a conditio sine qua non do ingresso no esoterismo.

O conflito não era somente de ordem legal. Embora tivesse origem remota em organizações esotéricas professadamente cristãs, a Maçonaria tinha se tornado, em várias partes do mundo, uma força ostensivamente e violentamente anticatólica, incentivando perseguições e matanças de católicos, principalmente na França (durante a Revolução e depois de novo no princípio do século XX),12 no México (onde isso provocou a guerra dos Cristeros) e na Espanha, onde, com a mal disfarçada conivência do governo republicano maçônico, padres e fiéis foram mortos a granel e muitas igrejas destruídas antes mesmo da eclosão da Guerra Civil.

Quer dizer: o católico que se filiasse à Maçonaria não apenas incorria em excomunhão automática, mas se tornava um traidor de seus correligionários assassinados.

Guénonianos católicos como Jean Tourniac fizeram o diabo para provar que as doutrinas maçônicas eram compatíveis com o catolicismo, mas, é claro, isso ficou na teoria.13 Conversações entre líderes católicos e maçons em busca de um acordo não deram em nada. A excomunhão continuava em vigor, e o risco moral continuava altíssimo.

A partir dos anos 60, quando esses problemas começaram a tornar-se objeto de discussão mais aberta nos círculos de interessados em  tradicionalismo, o grupo perenialista começou a sugerir ao católico encurralado as seguintes soluções possíveis:

    1. Largue tudo e converta-se ao Islam.
2. Busque abrigo na Igreja Ortodoxa Russa, onde ainda há um resíduo de esoterismo e cujos sacramentos, no fim das contas, são aceitos como válidos pela Igreja Católica.
3. Filie-se à tariqa multiconfessional de F. Schuon, onde você poderá praticar ritos iniciáticos islâmicos sem conversão formal e mantendo-se a uma prudente distância dos muçulmanos exotéricos.

A primeira opção era com certeza a mais traumática. Afinal, o próprio Schuon tinha escrito que “mudar de religião não é como mudar de país: é como mudar de planeta”.14

A segunda era mais confortável, mas esbarrava num obstáculo que jamais vi algum autor perenialista sequer mencionar: a Igreja Ortodoxa Russa estava infestada de agentes da KGB, sendo quase impossível ao recém-chegado orientar-se naquela selva selvaggia de conspirações e fingimentos. Não por coincidência, a KGB estava, naquele mesmo momento, organizando e treinando organizações terroristas islâmicas para a guerra contra o Ocidente cristão.15

Sobrava a terceira, a mais fácil e natural. A tariqa de Schuon estava, de fato, repleta de membros de origem católica – a começar pelo próprio Schuon e por alguns de seus colaboradores mais próximos, como Martin Lings, Titus Burckhardt e Rama P. Coomaraswamy, dos quais os dois primeiros converteram-se ao Islam, o terceiro continuou católico ao menos em público, sem deixar de prestar ao sheikh o voto regulamentar de obediência total exigido nas tariqas.16

Nas almas daqueles que permaneciam católicos – ex professo ou de coração apenas –, realizava-se assim, em escala microscópica, o plano que, desde 1924, René Guénon traçara para o Ocidente inteiro.

V

Após descrever com as cores sombrias de um genuíno Apocalipse a degradação espiritual da civilização no Ocidente, atribuindo-a à perda das “verdadeira metafísica” e das ligações entre a Igreja Católica e a Tradição Primordial (ligações que só poderiam ter sido mantidas por intermédio das organizações iniciáticas),17 René Guénon prevê três desenvolvimentos possíveis do estado de coisas no Ocidente:18

    1. A queda definitiva na barbárie.
2. A restauração da tradição católica, sob a orientação discreta de mestres espirituais islâmicos.
3. A islamização total, seja por meio da infiltração e da propaganda, seja por meio da ocupação militar.

Essas três opções reduziam-se, no fundo, a duas: ou o mergulho na barbárie ou a sujeição ao Islam, seja discreta, seja ostensiva.

A eclosão da II Guerra Mundial pareceu mostrar que o Ocidente preferira a primeira opção, sendo um detalhe irônico o fato de que importantes autoridades religiosas islâmicas deram apoio total ao Führer, especialmente na questão do extermínio dos judeus.19 Coincidência  macabra ou profecia auto-realizável? Não sei.

Após a Guerra, a colaboração íntima entre governos islâmicos e regimes comunistas no esforço anti-Ocidental conjunto veio a se tornar tão notória que nem é preciso insistir nesse ponto. Não deixa de ser oportuno lembrar que hoje em dia a esquerda mundial empenhada em corromper o Ocidente “até fazê-lo feder”, como preconizava André Breton, é a mesma que apóia ostensivamente a ocupação muçulmana do Ocidente pela imigração em massa, bem como boicota por todos os meios qualquer esforço sério de combate ao terrorismo islâmico, de modo que há entre os dois blocos como que um acordo leninista de “fomentar a corrupção e denunciá-la”. Novamente cabe a mesma pergunta do parágrafo anterior, com a mesma resposta.

Para o aspirante de origem católica, tudo o que a tariqa oferecia era a escolha entre tornar-se muçulmano ou ser católico sob orientação muçulmana. A mesma escolha que Guénon oferecia a todo o mundo Ocidental.

Creio que com isso fica mais clara a intenção de Guénon ao espremer todas as religiões, especialmente a cristã, no molde forçado de um conceito descritivo islâmico, a distinção exoterismo-esoterismo. De fato, como dominar toda uma civilização sem enquadrá-la primeiro no sistema de coordenadas intelectuais da civilização dominadora, onde ela deixará de ser uma totalidade autônoma para se tornar parte de um mapa  abrangente? Também é óbvio que não bastava fazer isso em teoria: era preciso conquistar para essa nova visão das coisas os elementos mais valiosos, mais ativos intelectualmente, da elite da civilização-alvo. Só quando esta começasse a se compreender a si mesma nos termos do dominador, em vez dos seus próprios, ela estaria madura para aceitar, sem maiores reações, uma operação mais vasta de ocupação cultural. Tanto mais que a redução do cristianismo ao binômio exoterismo-esoterismo, acompanhada do diagnóstico sombrio da perda da dimensão esotérica, culminava inexoravelmente na conclusão de que a “restauração da cristandade”, das suas conexões com a Tradição Primordial e portanto das dimensões mais altas da sua espiritualidade, só poderia realizar-se sob a direção de um “esoterismo vivente”, isto é, do sufismo. Para usar os termos do próprio Guénon, era preciso submeter o Ocidente à “autoridade espiritual” do Islam antes de submetê-lo ao seu “poder temporal”.

A teoria de Schuon, segundo a qual os sacramentos cristãos conservavam o seu poder iniciático, parecia atenuar um pouco a força do argumento islamizante, mas na verdade não o fazia de maneira alguma. Sem a devida instrução espiritual, que só um “esoterismo vivente” poderia lhe oferecer, o portador de uma “iniciação virtual” permanecia inconsciente de tê-la recebido e não apenas ficava paralisado no meio da escalada iniciática, mas se arriscava, com isso, a sofrer toda sorte de distúrbios espirituais e psíquicos. Só a espiritualidade sufi – encarnada, neste caso, na pessoa de F. Schuon – poderia salvar os católicos de si mesmos.

A islamização do Ocidente – discreta ou ostensiva, pacífica ou violenta – é o objetivo central e, na verdade, único, de toda a obra de René Guénon. Ela inteira converge para essa meta, não como uma mera conclusão lógica, mas como uma espécie de única saída à qual o leitor – e, idealmente, o Ocidente inteiro — vai sendo levado, entre os muros de uma construção labiríntica, por um senso de fatalidade inexorável. Excluído esse objetivo, ela não passaria de um conjunto de especulações teóricas sem finalidade, um edifício de belas possibilidades espirituais irrealizáveis, coisa que ele sempre negou que ela pudesse ser.

Se fosse preciso uma confissão explícita para confirmá-lo, bastaria lembrar que, justamente no momento em que F. Schuon voltava da Argélia com o título de sheikh, alardeando sua intenção de “islamizar a Europa” (sic), Guénon declarava que a fundação da tariqa de Schuon em Lausanne, Suíça, era o primeiro e único fruto produzido pelo seu esforço de décadas.

VI

O que pode tornar esse objetivo nebuloso ou até invisível aos olhos do público são dois fatores:

Primeiro: Guénon afirma reiteradamente seu total desprezo por qualquer atividade, corrente ou ideologia política, assegurando que seus interesses nada têm a ver com a luta pelo poder e se voltam exclusivamente à esfera do espiritual e do eterno. Isso parece colocá-lo, aos olhos de muitos, incomparavelmente acima da atual disputa entre os países islâmicos e o Ocidente.

Esse modo de ver não é propriamente falso, é apenas vazio. É óbvio que Guénon não está disputando poder político. Está disputando algo que está infinitamente acima disso e do qual, segundo ele mesmo explica, o poder político não é senão um reflexo secundário, quase desprezível: está disputando autoridade espiritual. Está disputando-a com a Igreja Católica, colocando-se muito acima dela e pretendendo orientá-la desde as alturas sublimes da espiritualidade sufi (não necessariamente em pessoa, é claro).

Ele é muito explícito quanto a esse ponto. A Igreja Católica, em algum ponto da sua história, diz ele, perdeu contato com a Tradição Primordial e já não tem sequer uma compreensão das “partes superiores” da metafísica: detém-se na pura ontologia, ou teoria do Ser, sem penetrar nos mistérios supremos do Não-Ser (Schuon prefere dizer “Supra-Ser”).

Já me expliquei em outras ocasiões quanto ao que me parece ser a absurdidade intrínseca da doutrina do Não-Ser, e não vou voltar a esse assunto aqui. O que interessa no momento é salientar que, segundo Guénon, o catolicismo, a partir dessa mutilação inicial, veio decaindo acentuadamente até reduzir-se a uma mera devoção sentimental para as massas.

Como só quem pode reerguê-la desse abismo é quem ainda possua a conexão originária com a Tradição Primordial, é evidente que a salvação da Igreja e, através dela, de todo o Ocidente, só pode vir de fora. De onde, precisamente?

Do budismo não pode ser, já que Guénon nem mesmo o considera uma tradição inteiramente válida.

Do hinduísmo também não, porque não pode ser praticado fora da Índia nem por quem não seja de nacionalidade indiana. Tudo o que o hinduísmo pode fornecer é uma compreensão mais aprofundada da doutrina metafísica – e de fato Guénon recorre abundantemente aos textos hindus para isso –, mas a mera compreensão teórica, sendo indispensável, nem de longe pode fornecer por si mesma a autêntica “realização metafísica”.

Do judaísmo, menos ainda, pois seria inconcebível que a Igreja, tendo nascido dele, voltasse ao ventre materno sem anular-se ipso facto e cessar de existir.

Da Maçonaria? Impossível, não só por causa das incompatibilidades acima apontadas e jamais superadas, mas porque, segundo Guénon, as iniciações maçônicas são apenas de “Pequenos Mistérios”, segredos do cosmos e da sociedade que nem de longe tocam as alturas da suprema realização metafísica, os “Grandes Mistérios”.

De obstáculo em obstáculo – não é preciso examinar todas as alternativas –, a conclusão inexorável é que o labirinto de impossibilidades só tem uma saída: o catolicismo só pode ser devolvido à sua integridade originária se consentir em submeter-se ao guiamento de mestres islâmicos. Ou isso, ou a ocupação do Ocidente pelos muçulmanos. Tertium non datur.

Que, en passant, Guénon e seus continuadores tenham feito várias contribuições valiosas até mesmo à compreensão do catolicismo pelos próprios intelectuais católicos, especialmente no que concerne ao simbolismo e à arte sacra, é coisa que ninguém em seu juízo perfeito poderia negar.20

Mas, também aí, nada a estranhar. Que autoridade poderia um mestre sufi pretender exercer sobre os católicos se, pelo menos em alguns pontos seletos, não provasse compreender a sua religião melhor do que eles mesmos?21

Os artigos “católicos” de Guénon publicados na revista Regnabit entre 1925 e 1927 não provam, nem mesmo sugerem, que ele tivesse aceitado a independência e muito menos a superioridade do catolicismo em relação ao Islam. Prova apenas que, nesse período, ele ainda acreditava na possibilidade de dirigir o curso das coisas na Igreja Católica por meio da persuasão gentil e da infiltração.22 Sua partida para o Egito, em 1930, com a firme decisão de não mais voltar e de só se comunicar com o seu público daí por diante por meio da revista Études Traditionelles, assinala o momento em ele perde essa esperança e, integrando-se cada vez mais nos meios esotéricos egípcios (até mesmo casando-se com a filha do prestigioso sheikh Elish El-Kebir), passa a bola de volta às autoridades islâmicas que de longe haviam orientado suas ações no quadro europeu. Como as coisas evoluíram desde esse ponto até a adoção da política de terrorismo e “ocupação pela imigração” (coisa que, é claro, jamais aconteceria sem o beneplácito das autoridades espirituais islâmicas), é uma história que ignoramos e que só poderá ser contada, talvez, daqui a várias décadas. O que é absolutamente certo é que Guénon, desde o início da sua atividade pública, declarou não falar em seu nome próprio mas seguir estritamente as orientação de “representantes qualificados das tradições orientais”, entre os quais, sabe-se hoje, principalmente o próprio sheikh El-Kebir. É uma bobagem descomunal dizer que Guénon “se converteu ao Islam” em 1930. Ele já era membro regular de uma tariqa pelo menos desde os vinte e um anos, o que basta para mostrar que foi longamente preparado para a missão dificílima que iria desempenhar.

VII

O segundo fator que dificulta a percepção da identidade de Guénon como agente islâmico é o próprio impacto da obra dele sobre os seus discípulos. Qualificada como “o mais deslumbrante milagre intelectual da nossa época”,23 essa obra lança tantas luzes imprevistas sobre o fenômeno religioso e sobre a decadência espiritual do Ocidente, e é tão grande o seu contraste com todo o pensamento moderno ateu ou cristão, que se torna  quase irresistível a tentação de encará-la realmente como um milagre, uma intervenção divina no curso da História. Seyyed Hossein Nasr, em Knowledge and the Sacred,24 não hesita em apresentar toda a história intelectual do Ocidente como se fosse uma longa, tateante e semicega preparação para o advento das luzes guénonianas. Vista desse modo, a obra de Guénon parece uma mensagem supra-histórica vinda da aurora dos tempos, da própria Tradição Primordial e não de um sheikh egípcio contemporâneo.

O desejo de apagar suas raízes contemporâneas e pairar acima das contingências históricas é manifesto em vários trechos dessa obra, e reforçado ainda por várias expressões de desprezo à “mera” perspectiva histórica, segundo Guénon um ilusório véu de aparências passageiras encobrindo a realidade das coisas eternas. Ele chega a criticar o apego da mentalidade ocidental aos “fatos” como se fosse um vício de pensamento.

Jean Robin, caracteristicamente, proclama o guenonismo uma intervenção providencial e “a última chance do Ocidente”.25 É um direito inalienável do discípulo entusiasta celebrar a obra do mestre com os qualificativos mais enfáticos. Mas um qualificativo nada significa quando separado da substância que ele qualifica. Uma coisa é falar, genericamente, de “última chance do Ocidente” – e todos bem sabemos que o Ocidente precisa de uma. Mas outra coisa completamente diversa é esclarecer que não se trata de uma chance qualquer, de uma abstrata e genérica “restauração da espiritualidade” e sim de uma salvação pela islamização. Jean Robin simplesmente omite esse ponto.

Também é muito justo privilegiar o eterno e imutável acima do temporal e transitório. Mas qualquer fiel católico habituado ao sacramento da confissão entende que o salto para o eterno, sem passar pela consciência dos detalhes factuais da vida terrestre, tão freqüentemente humilhantes e deprimentes, não é espiritualidade, é angelismo. O apóstolo que afirma “Já não sou eu quem vivo, é Cristo que vive em mim” é o mesmo que confessa trazer “um espinho na carne” até o fim dos seus dias.

O desejo de voar para o mundo dos arquétipos eternos saltando por cima da realidade histórica concreta não aparece somente nos perfis hagiográficos da “missão de René Guénon”, mas em pelo menos três   livros de importantes autores perenialistas sobre o Islam.

Ideals and Realities of Islam, de Seyyed Hossein Nasr,26 Comprendre l’Islam, de Frithjof Schuon,27 e Moorish Culture in Spain, de Titus Burckhardt,28 mal escondem sua estratégia retórica de mostrar a vida muçulmana só pelos arquétipos eternos que simboliza, contrastando-os, explícita ou implicitamente, com as misérias factuais brutas do Ocidente materialista. A coisa chega mesmo a ser um pouco ingênua. Até uma criança percebe que não é justo comparar as virtudes de um com os defeitos do outro, em vez de virtudes com virtudes e defeitos com defeitos.

Tudo isso torna difícil, tanto ao leitor recém-chegado quanto às vezes aos próprios porta-vozes do perenialismo, admitir o óbvio: a obra de René Guénon pode ter todo o caráter providencial e salvador que se deseje, com a condição de que se admita claramente o óbvio: que, no fim das contas, ela jamais ofereceu outra via de salvação para o Ocidente exceto a islamização.

Também é certo que qualquer cristão inteligente, católico ou não, pode tirar proveito dos ensinamentos de René Guénon sem aderir ao projeto guénoniano, mas como recusar adesão sem saber ou querer saber que o projeto existe? Todo idiota útil é idiota e útil na medida mesma em que nega a existência daquele que o utiliza.

Muitos cristãos, católicos ou não, sentiram-se tão indignados ante os ensinamentos de René Guénon que fizeram várias tentativas de refutá-lo e até de achincalhá-lo. Essas tentativas só provaram a superioridade intelectual do adversário e caíram no ridículo ou no esquecimento.

Sob esse aspecto, os discípulos de Guénon não estavam totalmente errados ao considerá-lo insuperável (a “bússola infalível”, dizia Michel Valsân). Mas Guénon não precisa ser combatido nem vencido. Ao adotar o pseudônimo de “Esfinge” nos seus primeiros escritos, ele sabia que aqueles que não decifrassem a sua mensagem seriam engolidos e reduzidos à obediência. Aqueles que esperneiam entre gritos de revolta  não deixam se prestar-lhe obediência, a contragosto ou mesmo inconscientemente.29 Uma vez decifrada, porém, a Esfinge não tem remédio senão soltar gentilmente a presa, que sairá das suas garras não somente livre, mas fortalecida.

Petersburg, VA, 2 de julho de 2016

Decadência e submissão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de dezembro de 2015

Não lembro quem disse, mas, no fim das contas, um romance nada mais é que uma vida, a biografia de um personagem imaginário. Não necessariamente uma biografia completa, do berço ao túmulo, mas um apanhado dos episódios essenciais que marcam a figura de um destino individual de tal modo a fazer dele um símbolo, um modelo aproximativo de muitos destinos possíveis.

Em Soumission, de Michel Houellebecq (Paris, Flammarion, 2015), romance de sucesso mundial já traduzido no Brasil, a vida do personagem corre paralela à do seu país natal, num roteiro de decadência inelutável que  desemboca na submissão quase simultânea de ambos ao islamismo. O paralelo é realçado pelos nomes: François-France.

“Submissão”, em vez de “conversão”, é a palavra correta. François e a França não se convertem ao islamismo: caem dentro dele como corpos fatigados que desabam na cama.

A história transcorre no ano de 2022, numa eleição nebulosa em que o Front Nacional ganha o voto majoritário no primeiro turno (34 por cento), tendo como principal concorrente a Fraternidade Muçulmana que, transformada em partido político, supera em votação os socialistas e a moribunda direita gaullista. O Front representa, em teoria, a identidade nacional francesa, mas muitos católicos lhe sonegam apoio porque são “demasiado terceiromundistas” (sic). Cenas de violência acompanham as eleições, mas, como só são noticiadas na mídia com muitos dias de atraso, tudo transcorre numa atmosfera de aparente normalidade. Para evitar a ascensão do Front Nacional ao poder, as facções minoritárias se aliam à Fraternidade e elegem presidente o muçulmano Mohammed Ben Abbes. É o velho mito comunista da “frente antifascista” restaurado, agora sob patrocínio islâmico.

O novo governante é um homem simpático e moderado, que mantém a ala radical sob rédea curta e faz toda sorte de concessões gentis aos partidos aliados, insistindo em manter sob controle islâmico tão somente… a educação nacional. De início estão todos felizes, porque parece que nada vai mudar substancialmente, mas François logo percebe a profundidade das reformas introduzidas por Ben Abbes quando vai dar suas lições de literatura na Universidade de Paris III – a Sorbonne – e vê que a mais tradicional das universidades francesas, agora subsidiada por bilionários sauditas, virou oficialmente uma instituição islâmica na qual não há mais lugar para um agnóstico. Pouco após a demissão, convidado a dirigir a edição das obras do romancista J.-K. (Joris-Karl) Huysmans para a Bibliothèque de la Pléiade, ele vai a uma recepção elegante promovida pela editora Gallimard e nota que ali só há homens: as mulheres, no Islam, ficam em casa. Na escala maior da sociedade as mudanças não são menos portentosas: expelido o sexo feminino do mercado de trabalho, sobra emprego para todos os homens. Da noite para o dia, a França mudou de identidade sem nem mesmo perceber. Ben Abbes, o salvador da pátria, já sonha em integrar na Europa várias nações muçulmanas e restaurar o Império Romano em versão islamizada.

Ao longo da narrativa espalham-se muitas observações exatas sobre a lenta e inexorável decomposição cultural e ideológica da França, cada vez mais desprovida de uma autoridade moral e intelectual habilitada a infundir um sentido de ordem na vida nacional. Quando os partidos políticos, a Igreja, a Maçonaria, a intelectualidade e até o movimento nacionalista se mostram incapazes de compreender o enrosco em que se meteram, a entrada do Islam em cena surge como um alívio improvisado e humilhante, mas necessário: a nação confessa sua bancarrota e, com um pragmatismo entre derrotista e cínico, sem alegria nem tristeza, submete-se ao inevitável. Além de mostrar claramente aquilo que ninguém quer ver – que a força do Islam na Europa não está no terrorismo, e sim na imigração em massa -, a islamização da França, tal como a descreve Houellebecq, ilustra, mutatis mutandis, o conceito de “revolução passiva” de Antonio Gramsci.

Igualmente oportunista e leviana é a “conversão” do próprio François. Ela é magistralmente descrita sob a forma de um paralelo inverso com a biografia espiritual de J.-K. Huysmans. François é autor de uma tese universitária sobre o romancista de Là-Bas,  com a qual granjeou algum prestígio acadêmico. Huysmans, na juventude, envolveu-se em ocultismo e satanismo e, através de uma longa e atormentada crise espiritual, acabou se convertendo ao catolicismo, encerrando seus dias como oblata de uma ordem religiosa.

Nada de semelhante se passa com François. Sua aproximação com o Islam é tranqüila e sem dramas. Não tem, de fato, nenhuma profundidade espiritual. Mesmo a doutrinação que recebe é rala e brevíssima. Limita-se à leitura de um livreto de Robert Rediger, belga islamizado e discípulo de René Guénon, cuja ascensão na política francesa lhe permite viver com suas várias esposas – uma das quais de apenas quinze anos – num casarão elegantíssimo outrora pertencente ao crítico Jean Paulhan (precursor do desconstrucionismo, portanto um dos pais da decomposição cultural), discursando sobre as virtudes do Islam e, contra o mandamento corânico expresso, bebendo vinho na maior tranqüilidade (um hábito que nos anos 80 notei ser muito comum entre intelectuais “perenialistas”  islamizados).

Os argumentos com que Rediger muda a cabeça de François são de uma leviandade a toda prova. Consistem de:
(1) Uma promessa de reintegrá-lo no corpo docente da Sorbonne.
(2) Uma apologia do intelligent design em termos genéricos que serviriam para qualquer religião.
(3) Um discurso sobre as belezas da poligamia do ponto de vista darwiniano: condena os fracos e pobres ao celibato e oferece aos homens de prestígio, como por exemplo um professor universitário, o acesso fácil a mulheres.

Para o quarentão François, é uma oferta irrecusável. Após perder sua última namorada, uma moça judia que foge para Israel para escapar do anti-semitismo crescente na terra do capitão Dreyfus, ele se convence de que já não tem sex appeal, de que sua vida amorosa chegou ao fim: busca alívio na bebida e nas prostitutas, com as quais se entrega a toda sorte de extravagâncias eróticas sem nenhum prazer.  O que Rediger lhe oferece é a restauração, por via legal, da virilidade evanescente: no Islam todos os casamentos são arranjados à distância por meio de alcoviteiras e da instituição dos dotes, poupando aos tímidos, fracos e velhos os desafios da conquista amorosa e favorecendo, em vez dos atrativos viris, a mera superioridade financeira (nem François nem seu novo guru percebem que isso vai contra o princípio da seleção natural).

Tal como a aliança da direita e da esquerda com a Fraternidade Muçulmana, a conversão de François é um arranjo de ocasião, improvisado sem qualquer exame de suas implicações morais e existenciais de longo prazo. François apenas contempla as mocinhas tímidas, mudas e indefesas que se substituíram às ousadas feministas da época pré-islâmica, e conclui, com uma espécie de cinismo inconsciente:

— Não terei nada a lamentar.

No meio da narrativa, François, instigado por um amigo, faz uma visita à abadia de Rocamadour, imponente monumento da arquitetura medieval e foco de peregrinação tradicional onde se dera a conversão de J.-K. Huysmans ao catolicismo. Mas justamente ali, onde o autor de La Cathédrale vivenciara as mais profundas e arrebatadoras experiências espirituais, ele sente uma vaga emoção estética ante o ritual gregoriano e sai imune a toda mensagem cristã.

Sem nenhuma hostilidade especial ao cristianismo, ele aceita sem exame nem entusiasmo o argumento de Rediger contra a Encarnação, baseado exclusivamente no desprezo à espécie humana: Deus não desceria do Seu Trono de Majestade para se misturar com essa gentalha.

É impossível enxergar em Soumission o menor elemento autobiográfico: Houellebecq jamais freqüentou uma universidade (teve de documentar-se para descrever a vida na Sorbonne) e, com toda a evidência, não se identifica com o personagem central, cujo merecido desprezo por si mesmo transparece a cada linha da narração na primeira pessoa. Houellebecq é um daqueles gozadores a um tempo sádicos e discretos, que demolem tudo sem dar a impressão de estar fazendo nada de mais.

O duplo paralelismo – direto com o do destino nacional francês, inverso com a vida de J.-K. Huysmans – é a chave da sutil estrutura narrativa de Soumission: desaparecida do horizonte mental qualquer referência exceto museológica à experiência cristã, esfarelada a consciência entre mil e um artificialismos culturais e ideológicos – do desconstrucionismo ao darwinismo cínico da Nouvelle Droite –,  a alma da nação e a do indivíduo caem juntas no leito cômodo do fato consumado.

Ilusões democráticas (I)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de agosto de 2015

          

Um “princípio”, em filosofia, é uma afirmativa auto fundante e universalmente válida, que portanto não depende de nenhuma outra nem é limitada por quaisquer considerações externas.
Um mecanismo bem conhecido da mente humana, no entanto, faz com que as afirmativas mais débeis e incertas sejam tomadas como princípios absolutos justamente porque os seus propugnadores não sabem fundamentá-las nem são capazes de atinar com as consequências da sua aplicação. Despida de toda conexão lógica e de toda ligação com a realidade da experiência, a ideia solta paira no ar como uma divindade indestrutível, tanto mais hipnoticamente persuasiva quanto mais idiota.
Todos nós gostamos de viver numa democracia. No mínimo, acreditamos, como Churchill, que ela é o pior dos regimes, excetuados todos os outros. Quando vemos a facilidade com que ela se autodestrói, cedendo lugar a toda sorte de tiranias, ficamos consternados e imaginamos que isso se deve à concorrência desleal de concepções antagônicas. Mas essas concepções não teriam o poder mágico de obscurecer as vantagens óbvias de viver numa democracia se esta mesma não sofresse de alguma debilidade intrínseca que a torna vulnerável, mesmo aos ataques mais grosseiros e imbecis.
A debilidade principal da democracia reside, segundo entendo, no fato de que, sendo uma excelente ideia prática e nada mais, ela buscou desde o início escorar-se em fundamentos teóricos falsamente absolutos que a colocam num estado permanente de autocontradição e têm de ser diariamente negados, relativizados ou atenuados para que ela possa continuar funcionando. A democracia vive de expedientes antidemocráticos e sorrisos amarelos.
O primeiro e o mais capenga desses fundamentos é a noção de que o ser humano nasce investido de “direitos inalienáveis”. Um direito, como demonstrou Simone Weil no seu majestoso livro L’Enracinement, não é nada senão uma obrigação de alguém mais. Se digo que as crianças têm o direito à alimentação, significa que alguém tem a obrigação de alimentá-las. Um direito não é algo que exista em si, é apenas o efeito da obrigação.
Proclamar um direito sem definir o titular da obrigação correspondente é cuspir bolhas de sabão, é fingimento histérico. Foi por isso que Deus ditou a Moisés Dez Mandamentos, dez obrigações, não dez direitos. Mas, quando o Rei Luís XVI disse que A Declaração dos Direitos do Homem nada seria sem uma Declaração dos Deveres, cortaram-lhe a cabeça. A democracia começou tomando uma consequência como princípio e matando quem percebesse a inversão.
Isso não quer dizer que os direitos fossem errados, na prática. O problema é que nenhuma sociedade pode sobreviver sem impor obrigações. Como as obrigações foram banidas da esfera dos princípios, a incumbência de defini-las acabou cabendo à legislação comum, donde resultou a criação desse monstrengo que é o Poder Legislativo permanente, uma corporação de centenas de pessoas que passam o tempo todo criando obrigações e proibições para todas as outras. Milhares, centenas de milhares de obrigações e proibições. Leis em quantidade inabarcável por qualquer cérebro humano.
Era preciso ser muito sonso para não perceber que por essa via o Estado logo se tornaria o mediador onipresente de todas as relações humanas, estrangulando a liberdade em nome da qual os direitos foram proclamados.
[Continua]

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