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Ilusões democráticas (I)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de agosto de 2015

          

Um “princípio”, em filosofia, é uma afirmativa auto fundante e universalmente válida, que portanto não depende de nenhuma outra nem é limitada por quaisquer considerações externas.
Um mecanismo bem conhecido da mente humana, no entanto, faz com que as afirmativas mais débeis e incertas sejam tomadas como princípios absolutos justamente porque os seus propugnadores não sabem fundamentá-las nem são capazes de atinar com as consequências da sua aplicação. Despida de toda conexão lógica e de toda ligação com a realidade da experiência, a ideia solta paira no ar como uma divindade indestrutível, tanto mais hipnoticamente persuasiva quanto mais idiota.
Todos nós gostamos de viver numa democracia. No mínimo, acreditamos, como Churchill, que ela é o pior dos regimes, excetuados todos os outros. Quando vemos a facilidade com que ela se autodestrói, cedendo lugar a toda sorte de tiranias, ficamos consternados e imaginamos que isso se deve à concorrência desleal de concepções antagônicas. Mas essas concepções não teriam o poder mágico de obscurecer as vantagens óbvias de viver numa democracia se esta mesma não sofresse de alguma debilidade intrínseca que a torna vulnerável, mesmo aos ataques mais grosseiros e imbecis.
A debilidade principal da democracia reside, segundo entendo, no fato de que, sendo uma excelente ideia prática e nada mais, ela buscou desde o início escorar-se em fundamentos teóricos falsamente absolutos que a colocam num estado permanente de autocontradição e têm de ser diariamente negados, relativizados ou atenuados para que ela possa continuar funcionando. A democracia vive de expedientes antidemocráticos e sorrisos amarelos.
O primeiro e o mais capenga desses fundamentos é a noção de que o ser humano nasce investido de “direitos inalienáveis”. Um direito, como demonstrou Simone Weil no seu majestoso livro L’Enracinement, não é nada senão uma obrigação de alguém mais. Se digo que as crianças têm o direito à alimentação, significa que alguém tem a obrigação de alimentá-las. Um direito não é algo que exista em si, é apenas o efeito da obrigação.
Proclamar um direito sem definir o titular da obrigação correspondente é cuspir bolhas de sabão, é fingimento histérico. Foi por isso que Deus ditou a Moisés Dez Mandamentos, dez obrigações, não dez direitos. Mas, quando o Rei Luís XVI disse que A Declaração dos Direitos do Homem nada seria sem uma Declaração dos Deveres, cortaram-lhe a cabeça. A democracia começou tomando uma consequência como princípio e matando quem percebesse a inversão.
Isso não quer dizer que os direitos fossem errados, na prática. O problema é que nenhuma sociedade pode sobreviver sem impor obrigações. Como as obrigações foram banidas da esfera dos princípios, a incumbência de defini-las acabou cabendo à legislação comum, donde resultou a criação desse monstrengo que é o Poder Legislativo permanente, uma corporação de centenas de pessoas que passam o tempo todo criando obrigações e proibições para todas as outras. Milhares, centenas de milhares de obrigações e proibições. Leis em quantidade inabarcável por qualquer cérebro humano.
Era preciso ser muito sonso para não perceber que por essa via o Estado logo se tornaria o mediador onipresente de todas as relações humanas, estrangulando a liberdade em nome da qual os direitos foram proclamados.
[Continua]

Garras invisíveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 07 de agosto de 2015

          

Andei lendo, nos últimos dias, Till We Have Faces, a majestosa obra-prima em que C. S. Lewis toma de Apuleio o mito de Eros e Psique e o reconta à sua maneira. A narrativa é escrita na primeira pessoa pela princesa e depois rainha Orual, a irmã mais velha e mais feia da bela Psique, e assume a forma de um tremendo libelo contra os deuses, acusados de, sob a proteção da invisibilidade e da distância inacessível, fazer da vida humana um jogo arbitrário e cruel.
Justa e valente ao ponto de bater-se pessoalmente em duelo vitorioso contra o rei de um país inimigo, e educada, ademais, nos princípios da filosofia grega, Orual busca em tudo uma razão de ser, e não encontra. Sua revolta contra o destino chega ao auge quando os deuses lhe roubam a irmãzinha querida, a única alegria da sua triste vida, para fazer dela a esposa de um ser misterioso – um monstro, talvez – cujo rosto é proibido contemplar.
Quanto mais Orual se rebela, mais os deuses a perseguem, induzindo-a em erros e colocando-a em situações absurdas que ameaçam levá-la à insanidade. O romance tem passagens tão angustiantes que inspiram no leitor o “terror e piedade” da tragédia clássica, mas o desenlace da história no além-túmulo não é nada trágico, pois no fim das contas a rainha não é julgada pelos deuses perseguidores e sim pelo “deus desconhecido” que tudo cura e redime.
Não vou dar detalhes para não estragar a leitura. Mas para mim foi uma sorte estar lendo esse livro justamente numa ocasião em que tudo em volta me induzia a meditar sobre o destino paradoxal do cidadão numa democracia moderna, investido de direitos legais sublimes, mas submetido a poderes cada vez mais distantes e inacessíveis que o controlam, manipulam e atormentam num jogo de gato e rato.
Anos atrás li, não lembro onde, uma profecia budista de que no fim dos tempos os homens seriam deuses para os homens. Na época imaginei que se tratasse de um culto idolátrico, mas hoje entendo que não é preciso render-lhes culto para que alguns homens tenham os meios de reduzir o seu concidadão menos poderoso à condição de um rato que se debate em vão entre as garras de um gato invisível. O que os torna divinamente inalcançáveis não é nenhuma magia celeste, é a trama densa e indeslindável das leis, da burocracia e dos recursos tecnológicos postos à disposição de quem possa comprá-los. Governos, serviços secretos, partidos políticos, organizações revolucionárias e megaempresas transformaram-se em réplicas simiescas, mas não menos temíveis, dos deuses da antiguidade.
Eu poderia citar como exemplo o caso da pobre Debbie Schlussel, a colunista americana que em 2008, antes das eleições presidenciais, descobriu o certificado de alistamento militar grosseiramente falsificado de Barack Hussein Obama, prova cabal de que o candidato era um criminoso chinfrim, sem qualificações para obter uma licença de porte de arma ou mesmo um emprego de balconista do Wallmart. Até hoje essa verdade patente, visível a olho nu, enfrenta em vão a resistência sem rosto de poderes invisíveis e onipresentes (muito parecidos com o partido dos sonhos de Antonio Gramsci) que insistem em encobri-la com piadinhas evasivas, mesmo depois de sete anos de desastres presidenciais sem fim, que poderiam ter sido evitados antecipadamente mediante uma simples queixa na polícia.
A capacidade de desconversa desses fantasmas é ela mesma fantasmagórica. Sempre que se fala em documentos falsos, eles respondem em uníssono: “O presidente não nasceu no Quênia. ” Não contestam a acusação: mudam a identidade do acusador, forçando-o a patinar em falso. De onde vem essa oposição perversa, uniforme e obstinada? Nem todas as especulações dos teóricos da conspiração poderiam responder a essa pergunta envolta numa trama indeslindável de subterfúgios, que elas só tornam ainda mais enigmática. Pobre Debbie, pobre Orual.
Mas não preciso ir tão longe. Eu mesmo, durante a semana, vivi o papel do rato preso entre garras invisíveis. Se o leitor me permite, conto a história.
Como muitos outros escritores e jornalistas, uso o Facebook como canal de comunicação diária com o meu público leitor. Entremeando considerações filosóficas, piadas, recordações curiosas e invectivas contra o governo mais corrupto de todos os tempos, fui ampliando esse público até chegar além de 220 mil seguidores. Muitos deles, em 15 de março, foram às ruas com cartazes “Olavo tem razão”, protestando contra o silêncio ominoso da mídia e dos políticos em torno de denúncias que eu vinha fazendo desde 1993 contra o esquema comunopetista – ou comunolarápio – de apropriação do Estado.
Em 2013, tudo correu bem. O único inconveniente eram páginas repletas de caricaturações maldosas e pueris, quase sempre anônimas – o primeiro mas ainda nada alarmante sinal das garras invisíveis – que em reação me acusavam de tudo quanto era crime e me catalogavam, ao mesmo tempo, como espião do Mossad e agente islâmico, gnóstico maçom e fundamentalista cristão, nazista camuflado e comunista enrustido, além de fuçar a vida da minha família e recontar a minha biografia em tons horripilantes, com honestidade luliana e o senso cronológico de um drogado em plena bad trip.
A partir de 2014, porém, quando as verbas de propaganda concedidas pelo governo federal ao Facebook cresceram 118 por cento em comparação com o ano anterior (leia aqui), tudo mudou. Minha página passou a ser bloqueada a todo momento, sob as alegações mais levianas e despropositadas, enquanto as páginas que me acusavam até de assassinato eram, quando denunciadas pelos meus seguidores, abençoadas pelo Facebook com a garantia de que “não violavam as normas da comunidade”. Normas que, só posso concluir, lhes asseguravam o direito à prática impune do crime de calúnia, fazendo portanto do próprio Facebook uma organização criminosa, como aliás acontece com toda empresa que vai para a cama com o PT.
Agora, nas semanas em que vão ocorrer novas megamanifestações de rua contra o descalabro petista, veio um novo bloqueio, desta vez por trinta dias, de modo que eu não possa me comunicar com o público durante os protestos.
Só um mentecapto veria aí uma mera coincidência, pois o pedido de bloqueio partiu justamente da mesma página do MAV (Núcleo de Militância Virtual do PT), que me faz acusações caluniosas sob a proteção do Facebook (v. ilustração).
Como eu passasse a postar mensagens pela página da minha esposa, esta foi bloqueada também.
Quem são os agentes por trás dessa operação? Quem são os mavistas que a executam? Quem, na alta direção do Facebook, decidiu apoiar tão descaradamente crimes de calúnia e ainda perseguir a vítima?
Abrigados por trás de uma confortável invisibilidade, fazendo em pedaços a Constituição brasileira que proíbe o anonimato, os deusinhos do MAV e do Facebook infernizam a vida do cidadão e divertem-se a valer como larvas em festa no fundo do seu esgoto olímpico.
A partir de segunda-feira, minhas novas mensagens, incluindo os links para os artigos do Diário do Comércio, serão postadas na minha própria rede social, The Real Talk, (clique aqui).
Facebook que reproduza — ou esconda – o que quiser.

A Igreja humilhada (II)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de julho de 2015

          

Condenar a cosmologia medieval porque em alguns pontos ela não coincide com os “fatos observáveis do mundo físico” é tão estúpido quanto condenar um desenho por não haver correspondência biunívoca entre os traços a lápis e as moléculas que compõem o objeto retratado.
Estruturas representativas abrangentes só podem ser compreendidas e julgadas como totalidades. O fisicalismo ingênuo, apegando-se aos detalhes mais visíveis, deixa sempre escapar o essencial. A Física de Aristóteles foi rejeitada no início da modernidade porque dizia que as órbitas dos planetas eram circulares e porque sua explicação da queda dos corpos não coincidia com a de Galileu.
Só no século XX o mundo acadêmico entendeu que, retiradas essas miudezas, o valor da obra persistia intacto justamente porque não era uma “física” no sentido moderno do termo e sim uma metodologia geral das ciências. Quatro séculos de orgulhosas cretinices científicas haviam tornado incompreensível um texto com o qual ainda se pode aprender muita coisa (v. as atas do congresso da Unesco Penser avec Aristote, org. M. A. Sinaceur, Toulouse. Érès, 1991).
Toda a simbólica natural da qual o cristianismo só pode prescindir em prejuízo próprio desapareceu de circulação porque, visto com os olhos do fisicalismo ingênuo, o debate entre geocentrismo e heliocentrismo parecia colocar fora de moda o desenho medieval das sete esferas planetárias, uma concepção cosmo-antropológica enormemente complexa e sutil.
Expelido do universo intelectual respeitável, o simbolismo natural só sobreviveu como fornecedor ocasional de figuras de linguagem com que os poetas sentimentais da modernidade, carentes de toda compreensão espiritual e extasiados na contemplação do próprio umbigo, projetavam nas formas da natureza visível as suas emoçõezinhas. Georges Bernanos escreveu em L’Imposture algumas páginas devastadoras contra esse empobrecimento do imaginário moderno.
Os estudiosos que conservaram o interesse pelo velho tema tornaram-se esquisitões marginalizados não só pela classe universitária como também pela própria intelectualidade católica, mais interessada em fazer boa figura ante o fisicalismo acadêmico do que em defender o patrimônio simbólico da religião.
Uma obra notabilíssima como Le Bestiaire du Christ. La Mystérieuse Emblématique de Jésus-Christ, Bruges, Desclée de Brouwer, 1940), em que o arquiteto Louis Charbonneau-Lassay foi de igreja em igreja copiando e explicando cada símbolo animal de Nosso Senhor Jesus Cristo na arquitetura sacra medieval, passou quase despercebida dos meios católicos (mas, como veremos adiante, foi muito valorizada por autores muçulmanos).
Mesmo escritores que compreendiam a cosmologia medieval só ousavam falar dela em termos de valor estético, ao mesmo tempo que ofereciam as genuflexões de praxe ante a autoridade do fisicalismo acadêmico.
Um exemplo característico foi C. S. Lewis, que montou o edifício das suas Crônicas de Narnia sobre o modelo de uma escalada espiritual pelas sete esferas planetárias mas manteve essa chave simbólica cuidadosamente escondida até que ela fosse descoberta, após a morte do autor, pelo erudito Michael Ward (v. Planet Narnia. The Seven Heavens in the Imagination of C. S. Lewis, Oxford University Press, 2008):
“Seguindo-se à sua conversão — escreve Ward –, Lewis naturalmente considerava as religiões pagãs menos verdadeiras do que o cristianismo, mas, olhando-as sem referência à verdade, sentia que elas possuíam uma beleza superior. A beleza e a verdade podiam e deviam ser distinguidas uma da outra, e ambas da bondade.” (P. 27.)
Não deixa de ser uma ironia que, restaurando na arte justamente aqueles elementos da simbólica pagã que a cultura da Europa medieval havia absorvido e cristianizado, Lewis ao mesmo tempo se opusesse tão frontalmente à doutrina escolástica segundo a qual o belo, o verdadeiro e o bom – Unum, Verum, Bonum, na fórmula de Duns Scot – eram essencialmente a mesma coisa.
A timidez cristã ante os dogmas da modernidade chega a ser obscena.
O filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd – no mais, um pensador de primeira grandeza — foi um pouco além da timidez.
Alegando que a dialética hegeliana de tese, antítese e síntese só se aplica às coisas relativas, e que tão logo entramos no domínio do absoluto o que vigora é o antagonismo irrecorrível e a necessidade da escolha, ele condena a filosofia escolástica – portanto a cosmologia medieval inteira – por não ter banido completamente os resíduos culturais do paganismo (exigência impossível que, é claro, o próprio calvinismo também não cumpriu).
Nesse panorama, não estranha que o patrimônio simbólico desprezado e varrido para baixo do tapete fosse rapidamente colhido por intelectuais muçulmanos interessados, sim, numa restauração da cultura cristã tradicional, mas sob o guiamento e controle sutil… de organizações esotéricas islâmicas.
Ninguém, absolutamente ninguém na Europa cristã desde o século XVI dominou e explicou tão magistralmente o simbolismo espiritual cristão e demonstrou tão valentemente o seu valor cognitivo, e não só estético, como o fizeram René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Jean Borella e outros autores meio impropriamente chamados “perenialistas”.
Todos eles membros de tariqas – organizações esotéricas islâmicas –, e empenhados em abrir na dura carapaça do fisicalismo moderno um rombo por onde pudesse se introduzir a influência intelectual islâmica e avolumar-se até à conquista da hegemonia, usando o tradicionalismo cristão como força auxiliar, mais ou menos como Jesus, na versão islâmica do Segundo Advento, será rebaixado a segundo-no-comando dos exércitos do Mahdi.
Autores não diretamente ligados ao esoterismo islâmico que exploraram o mesmo veio, como Matthila Ghyka, Ananda K. Coomaraswamy e Mircea Eliade, sempre foram devedores intelectuais dos “perenialistas”.
Se hoje em dia a velha cosmologia readquire aos poucos o seu estatuto de conhecimento profundo, necessário e respeitável, multiplicando-se em todas as universidades do mundo civilizado os estudos a respeito, não há como deixar de reconhecer que isso foi devido, sobretudo, à obra de Guénon, de Schuon e de seus seguidores.
“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a chave de abóbada”, profetiza a Bíblia. A profecia ainda não se cumpriu totalmente, mas é óbvio que só a restauração da cosmologia simbólica pode ser a chave de abóbada numa reconstrução da cultura cristã. Apenas, os muçulmanos perceberam isso antes dos intelectuais cristãos e trataram de utilizá-lo em proveito próprio.
Temos uma dívida para com Guénon, Schuon e tutti quanti? É claro que temos. Eles nos devolveram o que era nosso, mesmo fingindo que era deles. Está na hora de praticar com eles aquilo que um velho ditado – islâmico, por sinal – recomenda: “Não perguntes quem sou, mas recebe o que te dou.”
Se o Papa, em vez de fazer isso, prefere esboçar um vago reconhecimento dos direitos de propriedade islâmicos sobre o simbolismo cristão da natureza, é que ele ainda padece daquela timidez auto-humilhante que reluta em afirmar vigorosamente o primado da cristandade nessa área.

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