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Democratizando o extremismo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de fevereiro de 2012

 

Leiam em http://www.fas.org/irp/eprint/rightwing.pdf . O relatório do Departamento de Segurança Interna dos EUA (Homeland Security) sobre o “extremismo de direita” é exemplo claríssimo de uma velha tática ditatorial: alertar contra um perigo hipotético, improvável ou inexistente para justificar a adoção de controles repressivos reais e imediatos.

Desde logo, um movimento, um partido, um grupo, não pode ser definido como “extremista” ou “moderado” somente com base no diagnóstico que ele faz da realidade. O extremismo, assim como a moderação, só começa quando do diagnóstico se passa a alguma proposta de ação, a alguma estratégia pelo menos genérica e abstrata. Por exemplo, se alguém diz que o capitalismo se baseia na exploração dos pobres pelos ricos, não se pode deduzir daí que ele pregue a destruição violenta do regime, ou muito menos que a esteja planejando. Uma mesma descrição de um estado de coisas é compatível com muitas propostas de ação diferentes, ou até com a recusa de oferecer propostas. O crítico do capitalismo pode achar, por exemplo, que o regime deve ser mudado pacificamente e por via democrática. Ou pode achar que o capitalismo, por pior que seja, é ainda preferível às outras alternativas. Pode até achar que não há nada a fazer, que a exploração dos pobres é um destino inelutável da humanidade.

O Homeland Security ignora essas distinções elementares e começa a carimbar os cidadãos com o qualificativo infamante de “extremistas” simplesmente com base na visão que eles têm da realidade, no modo como eles enxergam o que está acontecendo.

Ao longo de todo o relatório, não se vê uma menção sequer a alguma proposta de ação política radical ou violenta dos “extremistas de direita”. Estes são assim nomeados porque não gostam da administração Obama, porque acham que a imigração ilegal é um perigo para o país, porque são contra algum programa de “proteção às minorias” ou contra as legislações de controle de armas e, last not least, porque acreditam que há um governo mundial em formação, arriscando debilitar a soberania americana.

São puros delitos de opinião, dissociados de qualquer plano, veleidade ou sonho de ação concreta, seja “extremista”, seja mesmo “moderada”. Por esse critério, nenhum americano conservador escapa da classificação de “extremista”. Quais, então, devem ser vigiados e, eventualmente, presos? Onde toda uma faixa da população está criminalizada a priori, o governo está livre para selecionar os suspeitos conforme as conveniências políticas do momento. A política anti-extremista do Homeland Security começa a se parecer com a legislação fiscal e trabalhista do Brasil, calculada para colocar na ilegalidade todos os empresários, sem distinção, de modo que, nas diversas contingências da política, o governo se sinta à vontade para escolher quais lhe convém prender ou deixar à solta.

A única ação a que o relatório alude por alto não é política: consiste em comprar armas e munições. O próprio governo federal estimula o povo a fazer isso, na medida em que se recusa a agir decisivamente contra a imigração ilegal e, por outro lado, anuncia a cada momento novas medidas restritivas contra a posse de armas pelos cidadãos. Essa conduta oficial induz cada americano a imaginar o que será da sua família quando sua casa for invadida por ilegais armados e ele não tiver sequer um 38 para se defender. O resultado é uma corrida às lojas de armas, que o mesmo governo, então, aponta como sinal de extremismo galopante. Como, porém, o relatório admite que o impulso de se armar é crescente não só entre os “extremistas” mas também entre os “cidadãos honestos”, resta a pergunta: como distinguir estes daqueles? O próprio relatório fornece a resposta, ao menos implicitamente: é preciso cruzar os critérios, articulando a compra de armas ao perfil de opinião. Se você compra um Smith & Wesson calibre 22 e é contra o governo, você é um extremista. Se compra um fuzil-metralhadora, mas é obamista devoto, está fora de suspeita.

Qualquer semelhança com a política nazista, que reprimia a posse de armas pelos cidadãos comuns mas favorecia a emissão de licenças para os membros e simpatizantes do Partido, é mera coincidência, não é mesmo? Ou vocês são por acaso “teóricos da conspiração”, portanto suspeitos de extremismo?

Para tornar as coisas um pouco mais sombrias, o presidente aprovou em 31 de dezembro passado, aproveitando a distração geral de fim de ano, um decreto que permite ao governo prender e manter preso indefinidamente, sem processo nem habeas corpus, qualquer suspeito de terrorismo (v. http://thinkprogress.org/security/2011/12/31/396018/breaking-obama-signs-defense-authorization-bill/?mobile=nc). Com aquele seu típico ar de candura no qual só mentes demoníacas enxergariam uma ponta de malícia, Obama assinou o decreto ao mesmo tempo que prometia não permitir sua aplicação. As mentes demoníacas começaram a perguntar: “Então por que aprovou em vez de vetar?”, mas ainda não obtiveram resposta.

Como o Homeland Security inclui na lista de suspeitos virtuais de terrorismo quem quer que estoque alimentos para mais de uma semana (o que no temor geral de uma crise já virou epidemia), está claro que, uma vez carimbado como extremista, basta o sujeito fazer uma compra mais fornida no Walmart para sofrer um upgrade no catálogo, passando à categoria de terrorista. Para metade da população americana, vai ser difícil escapar dessa. É claro que o governo não vai prender todo mundo. Vai prender, e manter na cadeia indefinidamente, quem bem lhe interesse.

Um novo sucesso do fracasso?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de fevereiro de 2012

Embora a popularidade de Barack Hussein Obama esteja baixíssima, as perspectivas eleitorais nos EUA não são as melhores para os republicanos. Até agora, o candidato preferido nas eleições internas é Mitch Romney, mas há tanta resistência contra ele nas bases, que, previsivelmente, muitos eleitores terão preguiça de ir às urnas só para votar de novo, como em 2008, num puro mal menor. Historicamente, o GOP (Grand Old Party) só tem chance quando escolhe um candidato com clara imagem de conservador, como Eisenhower ou Reagan, mas se dá muito mal quando aposta em conciliadores e muristas. Foi precisamente por isso que a grande mídia, obamista até além do limite da sanidade, vendo seu ídolo cair nas pesquisas, passou ao plano B: promover Romney para dividir o eleitorado republicano, demonizando Gingrich que ameaçava unificá-lo. Está dando certo.

O problema com Romney é que seu eleitorado não é ideológico. Compõe-se essencialmente de “moderados” e indecisos. O ex-governador de Massachusetts mudou de posição tantas vezes, e em tantos assuntos, que ninguém sabe exatamente o que ele pensa sobre coisa alguma. Sua força está na simpatia, na inegável capacidade de comunicação e na fraqueza dos concorrentes. Estes, em contrapartida, têm sua base de apoio entre “verdadeiros crentes”, que votam por convicção. Resultado: os eleitores de Romney se bandeariam automaticamente para Gingrich, Santorum ou mesmo Ron Paul, se um destes fosse o escolhido, mas a recíproca não é verdadeira. Entre os conservadores há mesmo quem pense que Romney é até pior que Obama, e nada menos de vinte por cento dos republicanos já declararam em pesquisas que, na hipótese de um confronto final entre os dois, darão um novo mandato ao atual presidente.

` Para complicar as coisas, o megabilionário George Soros, financiador-mor do Occupy Wall Street e da ascensão da Fraternidade Islâmica ao poder em vários países do Oriente Médio, falando outro dia a um grupo de seus co-investidores, declarou alto e bom som que nada têm a se preocupar com as próximas eleições, pois um governo Romney não será muito diferente da gestão Obama. Na boca dele, isso era elogio, mas, entre as bases republicanas, soou como uma confirmação de tudo o que pensavam de pior a respeito de Romney.

A colunista Ann Coulter, adepta entusiasta de Romney, andou espalhando o slogan: “Ajude a reeleger Obama: vote em Gingrich”. Hoje sabemos que é o contrário: o ex-speaker of the House teria muito mais chances contra o atual presidente, atraindo para si boa parte dos torcedores de Santorum, de Ron Paul e do próprio Romney, enquanto este não tem igual força unificadora.

Não é impossível, mas muito improvável, que, debilitada a candidatura Gingrich pelo fiasco nos debates da Flórida, os conservadores, para se livrar de Romney, cerrem fileiras em torno de Santorum. O problema é que este não tem dinheiro e entraria em campo contra a maior verba de campanha que os democratas já conseguiram juntar ao longo de toda a sua história.

Jogando habilmente com o poder da mídia a explorando as fraquezas internas do partido adversário, os democratas estão se saindo muito bem na difícil operação de transfigurar em candidato viável um dos presidentes mais impopulares de todos os tempos, sem precisar para isso nem mesmo melhorar a imagem da criatura.

Dupla utilidade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de fevereiro de 2012

Desde logo, informo que jamais escreveria sobre tipos deprimentes como os srs. Emir Sader, Vladimir Safatle, Sidney Silveira, Júlio Lemos, Eduardo Wolff e similares se não julgasse haver nisso uma dupla utilidade.

De um lado, serve para esclarecer e documentar o presente estado de coisas no Brasil mental. Foi com esse intuito que em 1995 comecei a publicar O Imbecil Coletivo, série de apontamentos sobre uma derrocada cultural jamais vista antes em qualquer país medianamente civilizado e digna, portanto, de ser anotada para auxílio dos futuros historiadores, se algum houver ainda, os quais terão muita dificuldade em enxergar nas trevas deste período, tal como o homem caído temporariamente em estado de inconsciência patológica mal consegue colar as duas pontas da sua biografia, cortadas e separadas por uma faixa de negrume impenetrável. Se hoje prossigo redigindo essas notas, é para dar ciência de que o estado de coisas ali apontado não cessou de piorar, por inverossímil que pareça, tendo extravasado dos círculos letrados para a sociedade em geral, imersa hoje na barbárie cotidiana de um carnaval sangrento e de uma abjeção moral tão funda que as palavras falham em descrevê-la.

De outro lado, fornece aos meus estudantes e leitores, a título de alerta, um mostruário dos riscos de alienação e de corrupção interior que, nesse quadro, ameaçam roer as mais promissoras sementes de uma vida intelectual nascente.

Serve, nesse sentido, para ilustrar um capítulo de metodologia filosófica que assimilei desde a mais remota juventude, que retomei e reaprendi mil vezes ao longo das décadas, que se incorporou à minha mente ao ponto de se tornar quase uma segunda natureza, e que eu desejaria ardentemente repassar a todos os que me lêem e ouvem. Devo o aprendizado dele a muitos mestres, especialmente (sem desdouro de quaisquer outros) Sócrates, Sto. Agostinho, Montaigne, Kierkegaard, Ortega, Julián Marías, Alain, Louis Lavelle, Eric Voegelin e Paul Friedländer, mas, antes de todos eles, ao oráculo de Delfos, que o resumiu, histórica ou mitologicamente, no lema: “Conhece-te a ti mesmo.”

Esse mandamento significa que toda investigação filosófica deve tomar raiz numa consciência muito clara da nossa própria situação existencial, da nossa condição pessoal e sócio-histórica, das nossas contradições interiores e das motivações dos nossos atos, mesmo as mais secretas, ruins e decepcionantes. Só daí deve elevar-se, pouco a pouco, às grandes especulações abstratas que, sem isso, se tornarão fetiches intelectuais, mecanismos de alienação ou, na melhor das hipóteses, puros exercícios escolares sem genuína substância intelectual, por elegantes e sofisticados que pareçam.

Se, por mal dos pecados, nossa situação pessoal e social se revela desprezível e infame, irrisória, mesquinha, afastada de tudo quanto pode haver de grande e sublime no mundo, tanto mais obrigatório se torna aquele exame de consciência, para não corrermos o risco de buscar em estudos nominalmente nobres e elevados um mero anestésico de ocasião contra a realidade da nossa miséria. Tal é, na verdade, a mais sedutora e letal das tentações para o intelecto jovem na atmosfera opressiva de uma nação culturalmente atrofiada. Que reconforto entorpecente, que satisfação deleitosa não sente o estreante que, marcando seu contraste com a incultura ambiente, pode exibir ante o público estupefato o seu domínio das técnicas intelectuais mais requintadas, a atualização do seu espírito com os debates mais complexos que se travam nos “grandes centros” universitários da Europa e dos EUA!

Não há nada de mau em aprender essas coisas. Em certos momentos, é até obrigatório. Mas, quando essa escalada aos altos píncaros se faz saltando sobre a exigência preliminar do arraigamento consciente na realidade pessoal e histórica imediata, o resultado é aquela mistura indigesta de requinte aparente e tosquice profunda, que tão bem caracteriza o pseudo-intelectual do Terceiro Mundo.

Partindo dessa falsificação de base, o que parecia uma estréia promissora vai aos poucos se corrompendo e se prostituindo até descer à vigarice ostensiva, que mesmo os leitores sem muita cultura acabam notando.

Esse mal, que afeta até os mais inteligentes e esforçados, se exterioriza em mil e um sintomas, dos quais não é o menos signicativo o mau gosto, o estilo ao mesmo tempo entojado e capenga da sua escrita. O sr. Júlio Lemos, por exemplo, cujo talento inato para os estudos filosóficos eu seria o último a negar, estraga tudo quando tenta compensar o seu parco domínio do idioma com o apelo reiterado a expressões inglesas perfeitamente desnecessárias, só para se dar ares de professor da Ivy League. Leiam e verifiquem. O homem não tem sentimentos mesclados, tem mixed feelings. Não tem uma questão a resolver, tem uma issue. E assim por diante. Termos estrangeiros usam-se quando têm uma conotação inimitável em vernáculo ou quando são expressões técnicas consagradas, como habitus ou Dasein. Fora disso, são pura frescura, coisa de subdesenvolvido.

Falo do modo de escrever porque nada revela melhor o estofo interior de uma alma. A matéria pode ser colhida em leituras, às vezes em qualquer manual ou dicionário de filosofia, mas o estilo, doa a quem doer, é o homem.

Também não me refiro ao sr. Lemos em particular; há centenas como ele. O sujeito começa com esses vícios e uns anos depois está pronto para aprender a se esconder pelos cantos, como um rato, sempre que comete alguma asneira que não é homem bastante para confessar. Da afetação à empulhação o caminho é bem curto.

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