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Duguinismo e ignorância

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de abril de 2014

          

Os leitores deste jornal são em geral empresários, pessoas com grande responsabilidade na área econômico-social, e é da máxima importância que tomem suas decisões estratégicas com base em informações fidedignas. Lembro a esses leitores que há nove anos venho aqui fazendo análises e previsões que nunca, nem uma única vez, a passagem do tempo e o acúmulo de fatos deixaram de confirmar.

As mais confirmadas de todas vieram a ser, especialmente, aquelas que, num primeiro momento, mais foram alvos de chacota, deboche e negações peremptórias, proferidas com ares de desprezo olímpico pelos representantes da grande mídia e do establishment universitário e repetidas infindavelmente por estudantes e blogueiros semi-analfabetos.

O caso do Foro de São Paulo é somente o mais notório. Menos vistoso, porém incomparavelmente mais importante, é o prof. Alexandre Duguin (alguns preferem escrever “Dugin”), cujo papel decisivo no cenário mundial os “formadores de opinião”, tanto jornalísticos quanto universitários, insistem em ignorar ou minimizar, mantendo assim o público na total obscuridade quanto a fatores cruciais que determinam o curso das coisas na política internacional.

Em 2011 tive com esse eminente pensador e estrategista russo um longo debate por internet, que se prolongou de março a julho e cujo texto integral foi depois publicado pela Vide Editorial, de Campinas (“Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Um Debate entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho”, 2012), sendo também acessível, em versão na língua inglesa, no site do Inter-American Institute (www.theinteramerican.com).

Aceitei o debate porque já acompanhava o desenvolvimento das idéias do professor Duguin desde pelo menos 2003, tendo sido o primeiro a mencionar-lhe o nome na mídia nacional, num tempo em que até nos Estados Unidos ele era praticamente ignorado (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/030426globo.htm). Naquela época a doutrina que ele compartilhava com o escritor Eduard Limonov ainda era conhecida como “nacional-bolchevismo”.

Ao romper com Limonov, uns anos depois, Duguin trocou o nome do sistema para “eurasianismo”. Os motivos da ruptura me chamaram a atenção: Limonov, crítico feroz da administração Putin, foi parar na cadeia, enquanto Duguin, filho de oficial da KGB, recebia do governo russo toda sorte de homenagens e favores.

Aos poucos a coerência entre a estratégia político-militar de Vladimir Putin e os preceitos do eurasianismo mostrou ser muito mais que mera coincidência, especialmente quando se soube que Putin havia colocado à disposição do prof. Duguin um vasto escritório repleto de assessores, tudo pago pelo Estado.

Na época do debate, já estava claro que o eurasianismo era literalmente a estratégia do governo russo, e de que sem o conhecimento aprofundado do pensamento do prof. Duguin era tão impossível compreender as ações de Putin quanto seria inviável compreender a política externa americana, de Eisenhower a Gerald Ford, ignorando as idéias de Henry Kissinger.

O motivo inicial que levou os iluminados opinadores a achincalhar essa obviedade como um produto extravagante da minha mente insana foi, claramente, o natural despeito do ignorante ante coisas que estão acima da sua capacidade. As idéias do prof. Duguin são uma síntese complexa dos seguintes elementos: o marxismo-leninismo-stalinismo, a geopolítica de Halford J. Mackinder e Karl Haushoffer, o messianismo russo de Aleksei Khomiakov, Nicolai Danilevski, Fiodor Dostoiévski e Vladimir Soloviev, o islamismo, o esoterismo de René Guénon e Julius Evola, bem como o pensamento “revolucionário conservador” (protonazista) de Moeller van den Bruck e Edgar Julius Jung.

Existe alguém, nos meios jornalísticos e acadêmicos deste país, que conheça todas essas áreas do pensamento pelo menos o suficiente para entender do que o prof. Duguin está falando? Não existia em 2003, não existia em 2011 e não existe agora.

Feliz ou infelizmente, com exceção de van der Bruck e Edgar Jung, que só depois disso vieram a atrair o meu interesse, todos os outros mencionados eram autores que eu já vinha estudando desde trinta anos antes do meu confronto com o prof. Duguin. O eurasianismo apresentou-se para mim, portanto, com uma inteligibilidade imediata que era absolutamente inacessível à classe intelectual brasileira. Esta só podia reagir à novidade estranha e indigerível de duas maneiras: fingindo desprezo, como a raposa da fábula, ou prosternando-se em adoração hipnótica ante a força do incompreensível. O público a quem chega alguma informação sobre o duguinismo divide-se, pois, em despeitados e deslumbrados.

Mesmo nos Estados Unidos foi preciso muito tempo para que o duguinismo chegasse a despertar alguma reação inteligente, mesmo nos círculos mais diretamente envolvidos nos altos debates da política externa americana.

O último número da Foreign Affairs trouxe um artigo interessante de Anton Barbashin e Hannah Thoburn, “Putin’s Brain: Alexander Dugin and the Philosophy Behind Putin’s Invasion of Crimea” , e na revista National Review, de 3 de março, apareceu Robert Zubin escrevendo sobre “The Eurasianist Threat“.

Já é um começo. Mas a compartimentação dos estudos universitários americanos em especialidades estanques ainda é um obstáculo à compreensão do duguinismo, sistema que, com todos os acertos notáveis e erros monstruosos que contém, se notabiliza antes de tudo pelo universalismo abrangente dos seus interesses e perspectivas.

O comunismo real

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de abril de 2014

          

Nos dicionários e na cabeça do povinho semi-analfabeto das universidades, a diferença entre capitalismo e comunismo é a de um “modo de produção”, ou, mais especificamente, a da “propriedade dos meios de produção”, privada num caso, pública no outro. Mas isso é a autodefinição que o comunismo dá a si mesmo: é um slogan ideológico, um símbolo aglutinador da militância, não uma definição objetiva. Se até os adversários do comunismo a aceitam, isto só prova que se deixaram dominar mentalmente por aqueles que os odeiam – e esse domínio é precisamente aquilo que, no vocabulário da estratégia comunista, se chama “hegemonia”.

Objetivamente, a estatização completa dos meios de produção nunca existiu nem nunca existirá: ela é uma impossibilidade econômica pura e simples. Ludwig von Mises já demonstrou isso em 1921 e, após umas débeis esperneadas, os comunistas desistiram de tentar contestá-lo: sabiam e sabem que ele tinha razão.

Em todos os regimes comunistas do mundo, uma parcela considerável da economia sempre se conservou nas mãos de investidores privados. De início, clandestinamente, sob as vistas grossas de um governo consciente de que a economia não sobreviveria sem isso. Mais tarde, declarada e oficialmente, sob o nome de “perestroika” ou qualquer outro. Tudo indica que a participação do capital privado na economia chegou mesmo a ser maior em alguns regimes comunistas do que em várias nações tidas como “capitalistas”.

Isso mostra, com a maior clareza possível, que o comunismo não é um modo de produção, não é um sistema de propriedade dos meios de produção. É um movimento político que tem um objetivo totalmente diferente e ao qual o símbolo “propriedade pública dos meios de produção” serve apenas de pretexto hipnótico para controle das massas: é a cenoura que atrai o burro para cá e para lá, sem que ele jamais chegue ou possa chegar ao prometidíssimo e inviabilíssimo “modo de produção comunista”.

No entanto, se deixaram a iniciativa privada à solta, por saber que a economia é por natureza a parte mais incontrolável da vida social, todos os governos comunistas de todos os continentes fizeram o possível e o impossível para controlar o que fosse controlável, o que não dependesse de casualidades imprevisíveis mas do funcionamento de uns poucos canais de ação diretamente acessíveis à intervenção governamental.

Esses canais eram: os partidos e movimentos políticos, a mídia, a educação popular, a religião e as instituições de cultura. Dominando um número limitado de organizações e grupos, o governo comunista podia assim controlar diretamente a política e o comportamento de toda a sociedade civil, sem a menor necessidade de exercer um impossível controle igualmente draconiano sobre a produção, a distribuição e o comércio de bens e serviços.

Essa é a definição real do comunismo: controle efetivo e total da sociedade civil e política, sob o pretexto de um “modo de produção” cujo advento continuará e terá de continuar sendo adiado pelos séculos dos séculos.

A prática real do comunismo traz consigo o total desmentido do princípio básico que lhe dá fundamento teórico: o princípio de que a política, a cultura e a vida social em geral dependem do “modo de produção”. Se dependessem, um governo comunista não poderia sobreviver por muito tempo sem estatizar por completo a propriedade dos meios de produção. Bem ao contrário, o comunismo só tem sobrevivido, e sobrevive ainda, da sua capacidade de adiar indefinidamente o cumprimento dessa promessa absurda. Esta, portanto, não é a sua essência nem a sua definição: é o falso pretexto de que ele se utiliza para controlar ditatorialmente a sociedade.

Trair suas promessas não é, portanto, um “desvio” do programa comunista: é a sua essência, a sua natureza permanente, a condição mesma da sua subsistência.

Compreensivelmente, é esse mesmo caráter dúplice e escorregadio que lhe permite ludibriar não somente a massa de seus adeptos e militantes, mas até seus inimigos declarados: os empresários capitalistas. Tão logo estes se deixam persuadir do preceito marxista de que o modo de produção determina o curso da vida social e política (e é quase impossível que não acabem se convencendo disso, dado que a economia é a sua esfera de ação própria e o foco maior dos seus interesses), a conclusão que tiram daí é que, enquanto estiver garantida uma certa margem de ação para a iniciativa privada, o comunismo continuará sendo uma ameaça vaga, distante e até puramente imaginária. Enquanto isso, vão deixando o governo comunista ir invadindo e dominando áreas cada vez mais amplas da sociedade civil e da política, até chegar-se ao ponto em que a única liberdade que resta – para uns poucos, decerto – é a de ganhar dinheiro. Com a condição de que sejam bons meninos e não usem o dinheiro como meio para conquistar outras liberdades.

Ao primeiro sinal de que um empresário, confiado no dinheiro, se atreve a ter suas próprias opiniões, ou a deixar que seus empregados as tenham, o governo trata de fazê-lo lembrar que não passa do beneficiário provisório de uma concessão estatal que pode ser revogada a qualquer momento. O sr. Silvio Santos é o enésimo a receber esse recado.

É assim que um governo comunista vai dominando tudo em torno, sem que ninguém deseje admitir que já está vivendo sob uma ditadura comunista. Por trás, os comunistas mais experientes riem: “Ha! Ha! Esses idiotas pensam que o que queremos é controlar a economia! O que queremos é controlar seus cérebros, seus corações, suas vidas.”

E já controlam.

Profetas russos e outras notas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de abril de 2014

          

Uns cento e tantos anos atrás, os intelectuais russos mais ligados à Igreja Ortodoxa alardeavam a plenos pulmões que no século XX a Rússia iria encabeçar uma grande revolução espiritual destinada a salvar o mundo da corrupção ocidental católico-protestante-judaico-ateística. O que veio foi a Revolução de 1917 e a maior perseguição anticristã de todos os tempos.

A Revolução, por sua vez, prometia um paraíso de paz, liberdade e prosperidade. O que veio foi a transformação da Rússia e de vários países em torno em matadouros humanos como ninguém tinha visto antes nem poderia jamais ter imaginado.

A pergunta decisiva da qual duguinistas e putinistas se evadem como baratas assustadas é a seguinte: Por duas vezes a Rússia já prometeu salvar o mundo e só conseguiu torná-lo mais parecido com o inferno. Vamos dar-lhe um novo crédito de confiança para que ela o faça uma terceira vez?

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Mais um exemplo de quanto valem as promessas russas. Uma das primeiras decisões de Leon Trotski como ministro das Relações Exteriores da Rússia Soviética, em 1917, foi divulgar o conteúdo de vários tratados secretos altamente comprometedores assinados entre as potências combatentes e iniciar uma campanha mundial pela abolição de todo segredo diplomático.

Nesse empenho ele recebeu o apoio entusiástico do então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, que consagrou a ideia num dos seus famosos “Quatorze Pontos”.

O que Wilson não podia prever, mas Trotski não podia ignorar, é que a república soviética nascida sob a bandeira da transparência já planejava e iria em breve transformar-se num tipo novo de Estado, até então desconhecido: o Estado integralmente baseado no segredo, o Estado moldado e dirigido pela polícia secreta. A URSS elevou até às alturas de grande arte a técnica de ocultar por completo o funcionamento da sua máquina estatal, ao mesmo tempo que vasculhava e exibia o das nações ocidentais com toda a estridência e o fulgor do escândalo.

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Ciência é confrontação de hipóteses à luz dos fatos, mas essa comparação é impossível se você não confronta também fatos com fatos, pesando-os com equanimidade. Essa ideia jamais ocorreu à maioria dos historiadores do “regime militar” e está praticamente proibida na mídia nacional. A norma geral é tomar partido de uma hipótese e somar os fatos que a confirmam, sem tentar jamais impugná-la com outros que a contradizem. A simples tentação de comparar já é repelida in limine como pecado mortal. A norma geral é, quando aparece um fato adverso, inventar logo uma hipótese qualquer que pareça neutralizá-lo, e então apegar-se à hipótese em lugar do fato.

Digo isso porque, tendo absorvido intensamente a narrativa esquerdista e acreditado nela com a fé de um devoto entre os meus dezessete e 35 anos, só muito tarde me ocorreu examinar os fatos adversos, e então descobri que praticamente nenhum livro que os mostrasse tinha sido jamais lido ou consultado pelos historiadores bem-pensantes. A imensidão da literatura internacional sobre a KGB, por exemplo, estava totalmente ausente do mercado brasileiro, e mais ainda das bibliografias universitárias. A história da Guerra Fria, vista desde o Brasil, tinha e tem um só personagem: a CIA. O antagonista, a KGB, é só um mito distante.

Foi sobretudo essa experiência que, contra a minha vontade, e entre espasmos de revolta contra a maldita realidade reacionária, foi minando a minha confiança na esquerda, até reduzi-la, hoje em dia, a zero. Todo intelectual de esquerda que repita essa experiência deixará de ser de esquerda e perderá seu círculo de amigos, talvez até seu emprego, motivo pelo qual cada um foge dela como um rato foge de um gato.

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Por duas vezes, na semana passada, o sr. José Serra, em entrevistas à Folha e à TV Bandeirantes, reiterou sua crença, genuína ou fingida, em dois dos seus mais queridos mitos de juventude, que ele comunga aliás com toda a esquerda falante deste País: (1) Em 1964 não havia nenhum perigo de tomada do poder pelos comunistas, era tudo uma fantasia direitista. (2) A CIA estava ativíssima nos bastidores da política nacional, tramando e financiando o golpe de Estado com milhões de dólares.

Não o condeno por isso. Se até os historiadores de profissão consagraram essas balelas como dogmas inquestionáveis, por que haveria eu de exigir maior responsabilidade intelectual de um mero político, membro de uma classe cuja ocupação consiste unicamente, como todo mundo sabe, em dar boa impressão?

Se o sr. Serra fosse algo que se assemelhasse ainda que longinquamente a um historiador ou mesmo a um intelectual de qualquer tipo, eu lhe faria duas perguntas:

1. Como pode ele continuar negando o óbvio depois que documentos oficiais do governo soviético vieram a comprovar uma verdadeira invasão de agentes da KGB em todos os escalões do poder no Brasil da época? (Os dados, os nomes, os planos e as instruções estão no vídeo
https://www.youtube.com/ watch?v=Dbt1rIg8FbI, e logo vem mais.)
2. Como pode ele ter tanta certeza da presença atuante e decisiva da CIA, se todos os historiadores de esquerda somados, escarafunchando tudo durante cinqüenta anos com uma suspicácia anti-americana mórbida e uma irrefreável sede de escândalos, não conseguiram até hoje descobrir o nome de nenhum, absolutamente nenhum agente da CIA que estivesse comprovadamente lotado no Brasil na época?

Sendo porém o sr. Serra o que é, não vou lhe perguntar é coisa nenhuma.

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