Artigos

Extinguindo o inexistente

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de setembro de 2014

          

Semanas atrás escrevi no meu Facebook que, se Marina Silva rompesse publicamente com o Foro de São Paulo e prometesse liquidá-lo caso eleita para a Presidência da República, não hesitaria em votar nela e apoiar sua candidatura pelos modestos meios ao meu alcance. Logo apareceu na internet uma entrevista à CNT, na qual a candidata anunciava a intenção de acabar com o Foro.

Dizem que a entrevista é falsa, e até acredito que seja, mas de qualquer modo ela expressa o que os admiradores de Marina querem que os eleitores “de direita” pensem dela, e nesse sentido é muito significativa, precisamente pelos atos falhos freudianos que, por trás da boa imagem pretendida, revelam uma ambiguidade inquietante.

Por um lado, Marina – ou quem pôs palavras na sua boca -– prometia extinguir até “o último vestígio” da maligna entidade, o que é uma notícia animadora. Mas, de outro afirmava que o Foro não existe na prática, jamais tendo passado de uma tentativa do sr. Lula, o que é manifestamente falso. O Foro continua em plena atividade, numa atmosfera de euforia que seus feitos justificam integralmente.

A Declaração Final do XX Encontro, realizado em La Paz, Bolívia, de 25 a 29 de agosto último, deixa isso claro: “Decorridos vinte e cinco anos da criação do Foro de São Paulo, uma das experiências mais bem sucedidas e unitárias da esquerda na região latino-americana e caribenha, o balanço da situação é indubitavelmente favorável às forças que o compõem. Quando o Foro de São Paulo foi criado, um só país dessa região era governado por um partido pertencente a ele, e hoje são mais de dez.” ( http://forodesaopaulo.org/declaracion-final-del-xx-encuentro-del-foro-de-sao-paulo/). Para um agente histórico que “não existe na prática”, essas vitórias são mais do que espetaculares: são mágicas. Na verdade, o Foro continua sendo a maior, mais poderosa e mais eficiente organização política que já existiu no continente latino-americano.

O texto de “Marina” dizia ainda que a ligação do PSB com o Foro de São Paulo “é um boato espalhado em tempo de eleição para confundir leigos” e que “quem fazia parte (do Foro) era uma ala do PSB ligada ao governo, desativada há anos”. Isso também é falso. O PSB ainda é um membro ativo do Foro e participou do seu mais recente encontro (www. psb40.org.br/ not_det.asp?det=5808) em La Paz.

Por fim, vinha a afirmativa de que “esses boatos são plantados pela turma do Aécio Neves”. Isso talvez seja o mais falso de tudo. Tanto o sr. Neves quanto os seus adeptos e, de modo geral, o seu partido, têm-se notabilizado, sobretudo, pelo silêncio obstinado que mantêm em torno do Foro de São Paulo, ao ponto de despertar a suspeita de cumplicidade ao menos passiva.

Que algo nas relações entre o PSDB e o Foro não está claro nem pretende estar, é algo que se percebe sem dificuldade pela reunião discreta entre dirigentes do Foro e o sr. Fernando Henrique Cardoso, na presença de alguns líderes do Partido Democrata americano, realizada em Miami em maio de 1993.

Essa reunião só foi noticiada por um único jornal, o Granma (edição cubana, não internacional), e justamente as cópias dessa edição, quando pus um aluno meu a procurá-las em 2008, haviam desaparecido da Biblioteca do Congresso e das suas subsidiárias. Coincidência ou não, a diretora da seção latino-americana da Biblioteca do Congresso em 2008 era a mesma pessoa que tinha organizado a reunião de 1993.

Quem levantou a lebre da ligação entre o PSDB e o Foro tão logo apareceu a candidatura Marina não foi nenhum emissário do sr. Aécio Neves. Fui eu, que sou tão entusiasta do sr. Neves quanto do consumo de pudim de alface diet. E não puxei o assunto para favorecer candidatura nenhuma, porém, bem ao contrário, para sugerir que a presente eleição presidencial deveria ser suspensa pelo TSE, dada a ilegalidade dos dois partidos mais favorecidos para o segundo turno.

Esta é, seguramente, a eleição mais irregular, mais ilegal que já se realizou no Brasil. A Lei Eleitoral de 1995 é categórica e inequívoca: diz o Art. 28: ” O Tribunal Superior Eleitoral… determina o cancelamento do registro civil e do estatuto do partido contra o qual fique provado… (II) estar subordinado a entidade ou governo estrangeiros.”

Que o Foro de São Paulo é uma entidade estrangeira, multinacional, criada em Havana por Fidel Castro e Lula; que a maior parte das organizações que o compõem são de fala espanhola; e que uma das especialidades do Foro, conforme confessou o próprio Lula, é ajudar os governantes esquerdistas a interferir em segredo na política interna dos países vizinhos – nada disso é coisa de que se possa duvidar razoavelmente.

Pouco importando quem leve a maioria dos votos, se Marina Silva ou Dilma, esta eleição já tem um único vencedor previsto e assegurado: o Foro de São Paulo.

Para piorar as coisas, a candidata que aparece na entrevista com a promessa de eliminar o monstro já vai desde logo acobertando as atividade dele sob o pretexto pueril de que ele não existe na prática. Cabe portanto perguntar se, por “extinguir os seus últimos vestígios”, os autores da farsa não estão confessando, involuntariamente, que Marina, uma vez no poder, vai eliminar só os vestígios, os traços patentes do Foro, deixando que por baixo disso a coisa real continue existindo sob outra identidade, sob outro nome ou sem nome nenhum, mais invisível e onipresente do que nunca.

Afinal, quem pode levar a sério uma promessa de extinguir o que não existe?

A degradação dos melhores

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 31 de agosto de 2014

          

No último número da elegante revista do Banco Itaú Personnalité, Ruy Castro enfatiza o contraste entre duas fases da existência do poeta Vinícius de Moraes:

“Há um Vinícius de Moraes sobre o qual não resta a menor dúvida: … o compositor, o letrista e o showman; o diplomata, o homem do mundo e o amigo de ilustres; o boêmio, sempre com um uísque a bordo, e o liberal, o homem de esquerda, com muitas amizades entre os comunistas; o cantor da beleza, o homme à femmes, que se casou nove vezes e vivia em permanente estado de paixão; o capitão do mato e o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô; o diletante da crônica, do teatro e do cinema…”

“Mas houve também um Vinícius tão real quanto esse acima, e que seus admiradores mal conseguiriam reconhecer se descrito sem as necessárias ressalvas. Um Vinícius profundamente católico, metafísico, passadista, politicamente de direita, simpático ao fascismo, íntimo de assombrações, inimigo do cinema falado, alérgico ao jazz moderno, desconfiado da juventude – e olhe que ele também era jovem – e certo de que o sexo era uma coisa apenas espiritual. O que? Sim, esse era o Vinícius de 1933.”

Sim, esses dois Vinícius existiram, e, se o do primeiro parágrafo é ainda um personagem popular decorridos trinta e tantos anos da sua morte, o do segundo permanece tão desconhecido que Ruy Castro tem de revelá-lo a um grupo de admiradores estupefatos, numa revista de poucos e requintados leitores.

Só há um problema. O “Vinícius de 1933”, que Ruy Castro descreve em termos que fazem dele um monstrinho antediluviano, era, malgrado algumas esquisitices inegáveis, um dos poetas mais sérios e profundos do idioma. Já o Vinícius nacionalmente conhecido – para Ruy Castro, o único normal e digno de admiração irrestrita – nunca passou de uma figura do show business, um velho caricato macaqueador da moda juvenil, gabando-se de ser “o branco mais preto do Brasil”, mas bebendo uísque importado em vez de cachaça, namorando populisticamente mulheres da alta sociedade, e escrevendo nada mais que sambinhas autocongratulatórios e umas frases de efeito que se conservaram na memória nacional não por meio da história literária, mas da indústria de discos e do governo que ele tanto ludibriou, vivendo de dinheiro público sem nem marcar o ponto na repartição.

“A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros pela vida”, “A mulher amada é o tempo passado no tempo presente no tempo futuro no sem tempo”, “Quem já passou por essa vida e não viveu pode ser mais, mas sabe menos do que eu…”, “Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém” e milhares de tolices semelhantes, que parecem ter sido produzidas especialmente para diários de moças, assinalam com toda a clareza a decomposição de um talento de poeta e de um caráter de homem, diluídos em álcool para mais rentosa distribuição comercial.

Não é coincidência, de maneira alguma, que essa transfiguração da literatura em cocô acompanhasse pari passu a aproximação cada vez mais íntima do poeta com os grupos de esquerda, que naqueles anos da ditadura precisavam desesperadamente de poster men. Se para servir a esse fim um grande homem tinha de ser infantilizado por meio de paparicações grudentas e seduções corruptoras, tanto melhor.

Era uma política consciente. Lembro, como se fosse hoje, o zunzum entre os comunistas da redação quando Carlos Alberto Libânio Christo, o “Frei Betto”, veio trabalhar na Folha, naquele intervalo de retorno ao ambiente profano, que nos seminários precede a opção definitiva pela ordenação sacerdotal. Era necessário, era urgente, comentavam, fazer amizade com o padreco, embebedá-lo, levá-lo a boates e puteiros, fazer dele um membro em regra da patota dos bons.

A ética por trás disso era a boa e velha inversão: já que a sociedade burguesa é corrupta e hipócrita, é preciso combatê-la desde dentro por meio da corrupção ostensiva, exibida, orgulhosa de si. Os serviços prestados ao Partido santificavam tudo. Quando Vinícius trocou o cristianismo por uísque, mulheres, samba e comunismo, tornou-se um modelo de virtudes.

Às vezes não era preciso chegar a tanto. O Partido sabia tocar o ponto sensível de cada um. Se o alvo escolhido fosse um pobretão apavorado com a perspectiva de morrer de fome, como Otto Maria Carpeaux, bastava oferecer-lhe empregos em troca de favores prestados, depois ir pedindo cada vez mais favores até que consumissem por inteiro o tempo e os talentos do infeliz, bajulando-o e aplaudindo-o à medida que se imbecilizava cada vez mais.

O apoio na hora da encrenca sempre deixava marcas fundas. Roland Corbisier, brilhante intelectual do Partido Trabalhista, intermediou o apoio dos comunistas à candidatura de Negrão de Lima ao governo do Rio em 1965, foi demitido do Ministério da Educação pelos militares e acabou fisgado. Virou o típico “bom sujeito”: divorciou-se da mulher, abandonou a Igreja e, de seus primeiros livros, A Responsabilidade das Elites e Formação e Problema da Cultura Brasileira (ambos de 1956), estudos magníficos sobre a vida intelectual no Brasil, passou a escrever manuais de marxismo-leninismo dignos da Academia de Ciências da URSS.

À medida que o gramscismo se consolidou como doutrina dominante nas universidades, a política de cooptação perdeu seu caráter de seleção individual e se tornou o critério geral de aprovação na carreira acadêmica e jornalística, a conditio sine qua non para os neófitos serem reconhecidos como “intelectuais”. A imbecilização industrializou-se e a cultura superior no Brasil acabou.

Dialética da covardia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de agosto de 2014


Duas ou três concessõezinhas oferecidas pela candidata à economia liberal, que no fundo em nada diferem daquelas feitas pelo primeiro mandato do sr. Lula, pouco significam em comparação com o fato de que o partido de Marina pertence ao Foro de São Paulo e, como tal, tem compromissos estratégicos internacionais.

Toda decisão covarde, quer se expresse por ação ou omissão, deixa no fundo da alma uma vergonha que, quanto menos reconhecida e confessada, mais exige rituais histéricos de compensação. Posta vergonhosamente em fuga por um golpe militar que não disparou um só tiro, a esquerda brasileira exibe até hoje os sintomas residuais do vexame enterrado, mas jamais completamente esquecido: daí sua compulsão incurável de exagerar hiperbolicamente os sofrimentos padecidos e a força ameaçadora do adversário, pintado sempre como um dragão voraz mesmo quando obviamente não passa de um cãozinho doméstico.

Exemplo típico é o historiador comunista Nelson Werneck Sodré, do qual escrevi em 2008 (v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/080414dc.html) :

“Descrevendo no seu livro A Fúria de Calibã os horrores apocalípticos da perseguição a intelectuais logo após o golpe de 1964, que ele não hesita em nivelar ao que sucedeu na Alemanha de Hitler, acaba se traindo ao relatar que, naquele mesmo período, publicou não sei quantos livros, teve não sei quantas críticas favoráveis, algumas entusiásticas, foi brindado com alguns prêmios literários e no fim ainda recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de História Militar, em cerimônia realizada na presença… do presidente da República, marechal Castelo Branco. Jamais um historiador consentiu em personificar tão escandalosamente um exemplum in contrarium da sua descrição geral dos fatos.”

Mas, evidentemente, Werneck não foi o único. A repressão foi tão violenta, tão avassaladora, que o período do governo militar (1964-1985) acabou sendo, segundo registros da Câmara Brasileira do Livro, o de maior prosperidade da indústria editorial esquerdista no país.

Paralelamente, jornalistas de esquerda dominavam as redações dos maiores jornais e eles próprios publicavam semanários “nanicos” nos quais falavam o diabo da “grande mídia burguesa”.

Intelectuais e artistas de esquerda imperavam também sobre as universidades e a indústria de espetáculos – tudo isso porque, coitadinhos, tinham sido banidos de toda atividade pública, como os dissidentes soviéticos ou cubanos. Nunca no mundo os perseguidos se refugiaram em catacumbas tão altas e vistosas.

Erik von Kuenhelt-Leddihn já ensinava que ninguém jamais entenderá a mentalidade esquerdista se não estudar muito bem o mecanismo do fingimento histérico.

Mas ninguém cairia vítima de uma neurose se dela não extraísse alguma vantagem secundária, algum lucro que pode ir muito além do mero reconforto psicológico postiço.

Exagerar o tamanho e a periculosidade do adversário dissemina entre os militantes um estado de alerta, instila neles um reflexo de autodefesa grupal que os predispõe a odiar o adversário mesmo e sobretudo quando nada sabem dele. Que partido revolucionário não precisa disso?

Quando uma compulsão neurótica se soma a um proveito objetivo, ficar cada vez mais neurótico se torna um modo de vida, uma “forma mentis” integral que acaba por absorver a personalidade inteira. Que mais pode desejar um revolucionário do que um uma engenharia cênica na qual fugir da realidade se transmuta num meio de agir sobre ela com alguma eficácia?

Dessa incongruência nasce uma segunda, também característica da mente revolucionária, que é o hábito de cantar vitória ao mesmo tempo que se imagina o adversário cada vez mais forte e indestrutível, principalmente quando este agoniza e esperneia no ar entre gemidos de impotência.

É assim que, no seu blog da “Carta Maior”, o indefectível dr. Emir Sader, mais conhecido nos círculos reacionários como Marquês de Sader, explica a adesão dos liberais Eduardo Gianetti da Fonseca e André Lara Rezende à candidatura Marina Silva como um truque maquiavélico da direita, prenúncio da restauração conservadora, quando ela é obviamente o oposto: a autodissolução de um corpo debilitado num corpo mais forte que, ao absorvê-lo, o extingue.

Duas ou três concessõezinhas oferecidas pela candidata à economia liberal, que no fundo em nada diferem daquelas feitas pelo primeiro mandato do sr. Lula, pouco significam em comparação com o fato de que o partido de Marina pertence ao Foro de São Paulo e, como tal, tem compromissos estratégicos internacionais que, no presente momento, seus aliados liberais não compreendem e nem sequer vislumbram, e que com toda a certeza prevalecerão, a longo prazo, sobre qualquer arranjo oportunista de campanha eleitoral.

Nada mais característico da debilidade direitista no Brasil, aliás, do que a pseudo-esperteza de aderir ao que não se pode vencer, receita de Maquiavel que, praticada pelo próprio inventor, só o levou de derrota em derrota até a completa humilhação final de ter de viver, na velhice, de um empreguinho chinfrim arrumado, num gesto de caridade, por um de seus velhos inimigos.

Maquiavel é o guru dos derrotados, sempre um derrotado ele próprio. Talvez por isso exerça tanta atração sobre quem não tem a mínima vocação para a vitória nem, por isso mesmo, como diria o sr. Lula, “nenhuma perspectiva de poder”.

Interpretando a debilidade como sinal de força, o Marquês de Sader, por seu lado, foge da realidade ao mesmo tempo que age sobre a mente da sua platéia com realismo exemplar: instigando nos fortes o medo do fraco para impeli-los a torná-lo mais fraco ainda.

Entre a dialética revolucionária e as astúcias teatrais do fingidor histérico, a semelhança não é jamais mera coincidência.

Veja todos os arquivos por ano