Apostilas

A transfiguração fenomenológica

Seminário de Filosofia, janeiro de 2002

Raymond Abellio 

Este texto será usado nas aulas de janeiro de 2002, no Rio (dias 9 e 10), em São Paulo (dia 12) e em Curitiba (dias 25 e 26), como material de análise e ponto de partida para investigações sobre três assuntos interligados: a natureza da especulação fenomenológica; teoria do conhecimento e gnosticismo; filosofia e mística. Peço aos alunos que o imprimam e o tragam consigo nas aulas. Fiz esta tradução e coloco-a aqui somente para facilitar a distribuição deste material entre os alunos do Seminário, ficando portanto proibida sua reprodução para quaisquer outros fins. — O. de C.

Quando, na atitude natural que é a de todos os seres “normais” existentes, “vejo” uma casa, minha percepção é espontânea, e é essa casa que vejo — não a minha percepção dela. Por outro lado, se minha atitude é “transcendental”, então é minha percepção mesma que é percebida. Mas esta percepção de uma percepção altera completamente minha abordagem primitiva.

O estado de experiência atual de alguma coisa, não complicado de início, perde sua espontaneidade pelo fato mesmo de que a nova contemplação tem por objeto algo que originariamente era um estado, não um objeto, e de que os elementos que compõem minha percepção não incluem somente aqueles pertencentes à casa “enquanto tal”, mas aqueles pertencentes à percepção mesma, considerada enquanto um fluxo atualmente vivenciado. E um traço essencialmente importante dessa “alteração” é que a concomitante visão que tive, nesse estado bi-reflexivo, da casa que era o meu “motivo” original, longe de ser perdida, deslocada ou nublada pela interposição dessa “minha” segunda percepção entre eu e a “sua” percepção original, é, paradoxalmente, intensificada, tornando-se mais clara, mais “atual” e carregada de mais realidade objetiva do que antes.

Confrontamo-nos aqui com um fato do qual não se pode dar conta por pura análise especulativa: isto é, a transfiguração da coisa quando conscientemente experienciada, sua transformação numa “supercoisa”, sua passagem de ser algo “sobre o qual se conhece” para ser algo que “é conhecido”. Este fato é insuficientemente apreciado, embora seja o mais notável em todo o campo da experimentação fenomenológica. Todas as dificuldades que encontramos na fenomenologia corrente e, de fato, em todas as teorias clássicas do conhecimento, nascem do fato de que consideram a dualidade consciência-conhecimento suficiente e apta para absorver a totalidade da experiência; ao passo que só a tríade conhecimento-conhecimento-ciência pode fornecer o genuíno fundamento para a fenomenologia.

Decerto, nada pode tornar essa transfiguração patente exceto a direta e pessoal experiência do próprio fenomenologista. Mas ninguém pode pretender ter compreendido a verdadeira fenomenologia transcendental a não ser que tenha tido essa experiência e sido “iluminado” em resultado dela. Ninguém, nem o mais sutil dos dialéticos ou o mais astuto lógico, que não tenha feito essa experiëncia e não tenha portanto visto coisas-por-trás-de-coisas, pode fazer senão falar sobre a fenomenologia; não pode participar ativamente de nenhuma experiência fenomenológica. Vejamos um exemplo mais preciso:

Até onde posso recordar, sempre fui capaz de reconhecer as cores azul, vermelha e amarela. Meu olho as via, e eu tinha um conhecimento latente delas. Certamente “meu olho” não fazia perguntas a respeito delas: como poderia fazê-lo? A função dele é ver — não ver-se a si mesmo no ato de ver. Mas meu cérebro mesmo estava como que adormecido: ele não era em nenhum sentido o “olho do olho”, mas meramente um prolongamento desse órgão. E portanto eu dizia simplesmente, quase sem pensar: isso é um belo vermelho — ou um azul apagado — ou um verde brilhante.

Um dia, anos atrás, quando caminhava entre os vinhedos do Cantão de Vaud, olhando o Lago de Genebra, tive a mais extraordinária experiência. O declive do outro lado, o azul do lago, o violeta das montanhas da Savóia, e à distância as geleiras cintilantes do Grand Comblin — tudo isso eu tinha visto uma centena de vezes. Então eu soube que nunca tinha olhado para eles. E, no entanto, eu vivera ali por três meses.

É verdade que, desde o começo, essa paisagem tinha me afetado profundamente. Mas tinha apenas produzido em mim um vago sentimento de exaltação. Sem dúvida o “eu” do filósofo é mais forte do que qualquer paisagem. A pungente sensação de beleza que experimentamos é apenas o “eu” medindo a infinita distância que nos separa da beleza, e daí obtendo forças. Mas, naquele dia, repentinamente, eu soube que era eu que estava criando aquela paisagem e que sem mim ela não existiria: “Sou eu que vos vejo e que me vejo a ver-vos e, ao fazer isso, vos crio.” Este grito do coração é o grito do Demiurgo ao criar o “seu” mundo. Não é apenas a suspensão do “velho” mundo, mas a projeção de um mundo “novo”. E, naquele instante, de fato, o mundo foi re-criado.

Eu nunca tinha visto cores tais. Elas eram milhares de vezes mais vívidas, mais delicadamente nuançadas, mais “vivas”. Eu soube que acabava de adquirir um sentido das cores — que eu estava vendo a cor pela primeira vez, e que até então eu nunca tinha realmente visto um quadro ou penetrado o mundo da pintura. Mas eu soube também que por esse despertar da consciência, a percepção de minha percepção, eu detinha a chave daquele mundo de transfiguração que não é um misterioso submundo, mas o verdadeiro mundo do qual estamos banidos pela nossa ignorância. Isso não tem nada a ver com a atenção. A transfiguração é completa. A atenção nunca é. A transfiguração conhece-se a si mesma em sua suficiência positiva. A atenção almeja atingir algum dia essa suficiência. Não se pode dizer, é claro, que a atentividade é vazia. Ao contrário, ela anseia pela plenitude. Mas este anseio não é realização. Quando voltei ao vilarejo, encontrei pessoas que estavam muito “atentas” a seu trabalho; no entanto, para mim, pareciam estar caminhando adormecidas.

Cahiers du Cercle d’Etudes Metaphysiques, 1954.

Notas para a Introdução à História Essencial da Filosofia – I

Apostila do Seminário de Filosofia

5 de maio de 2001

Pretendendo retomar no Seminário de Filosofia alguns temas do curso História Essencial da Filosofia, que lecionei no Rio de Janeiro em 1993 e 1994, reproduzo aqui um parágrafo da Introdução que estou preparando para a edição desse curso em livro, parágrafo que será objeto de comentários na próxima aula do Seminário em São Paulo e no Rio. – O. de C.

A noção de sabedoria abrange, numa síntese inseparável, ciência, essência, consciência e existência. O sábio não apenas possui o conhecimento do essencial, mas reconhece nele a essência da sua autoconsciência e o manifesta na sua existência enquanto forma humana do essencial. Uma existência na qual se torna visível a autoconsciência do essencial é, sob todos os títulos, uma imago Dei. Mas isto só pode ser plenamente reconhecido por quem seja também sábio ou por aqueles que, não o sendo, se coloquem na perspectiva adequada para enxergar a sabedoria em vista de realizá-la no futuro. São estes os que se denominam “filósofos”. Platão dizia-os “amantes de espetáculos”. Nem todo aquele que pode apreciar a prática de um esporte ou de uma arte está em condições de praticá-los pessoalmente. Mas a apreciação é condição indispensável para a prática futura. Aquilo que você não pode sequer ver, você não pode possuir e muito menos incorporar em você como qualidade pessoal. Filosofia é visibilidade de uma sabedoria a realizar.  

O fato de que, ao longo da história, os elementos dessa síntese tenham se separado ao ponto de hoje ser difícil concebê-los juntos na identidade de um homem não modifica em nada a definição originária da filosofia, mas sugere apenas que o nome filosofia foi sendo atribuído a coisas que ficam muito aquém das ambições dos primeiros filósofos. A ciência e a essência, por exemplo, entraram em antagonismo desde que Kant proclamou a impossibilidade de conhecer o que quer que seja para além dos fenômenos ou aparências. Ciência e consciência também já não parecem ter nada a ver uma com a outra desde que se admitiu a noção de ciência como um conjunto de registros padronizados que podem ser adquiridos mediante puro adestramento de aptidões cognitivas isoladas, sem qualquer comprometimento da personalidade total. Isto produz como seqüela a ruptura de ciência e existência: a ciência torna-se o desempenho de um papel social nas horas de expediente, sem relação com a vida íntima da autoconsciência. E assim por diante.

Da filosofia antiga e medieval para a moderna e pós-moderna, isto é, na passagem da filosofia como antevisão da sabedoria para o conceito atual da filosofia como profissão e disciplina acadêmica, houve portanto uma troca da figura centrípeta, onde os quatro elementos convergiam na direção da sabedoria:

pela figura centrífuga, onde os quatro elementos se afastam uns dos outros e se negam reciprocamente.

Admite-se como coisa líquida e certa, hoje em dia, que essa mudança se explica e se justifica pelo progresso da inteligência crítica, que desmantelou as antigas pretensões do saber unificado e habituou as pessoas a buscar conhecimentos mais modestos e mais seguros em campos mais limitados do conhecimento.

Mas, se um juízo qualquer não pode se alegar verdadeiro pelo simples fato de ser ambicioso, não se tornará mais verdadeiro pelo simples fato de ser modesto. Ademais, os elementos separados que resultam do afastamento centrífugo nunca se tornam completamente independentes, pois o quadro unificado que lhes dá sentido permanece como plano de referência no fundo, apenas reduzido a um esquema normativo “ideal” e “irreal” que, se não pode ser dispensado de todo, nem por isto é reconhecido como conhecimento efetivo. Este não é o menor dos paradoxos da moderna ciência acadêmica, onde o esquema normativo sobre o qual se erguem os critérios de validade do conhecimento não é considerado ele próprio um conhecimento, muito menos um conhecimento válido.

De outro lado, uma evolução histórica não é, por si, prova da validade dos resultados a que conduziu. Que as coisas tenham tomado determinado rumo não significa que esse fosse o único ou o melhor rumo possível, se bem que o ensino universitário, ao mesmo tempo que professa aceitar a irredutibilidade kantiana do valor ao fato, deduz dessa mera sucessão de fatos um juízo de valor segundo o qual as vias de conhecimento que foram abandonadas no curso do tempo devem ser condenadas como inferiores, superadas ou mesmo pecaminosas.

Da nossa parte, vamos aqui ignorar solenemente esse preconceito, pois o que nos interessa não é aquilo em que a filosofia se tornou historicamente, no curso de uma evolução a que só um injustificável pressuposto metafísico poderia dar o caráter de coisa necessária e insuperável, e sim o que a filosofia tem de ser necessariamente, como essência supratemporal, para poder sofrer essa evolução ou qualquer outra evolução temporal concebível. Pois, das duas uma: ou aquilo em que a filosofia se tornou conserva algo do que ela era originariamente, e neste caso há uma essência que transcende e abrange essas duas formas temporais; ou as múltiplas coisas que hoje se denominam “filosofia” já nada têm a ver com a filosofia antiga e portanto a evolução que levou desta àquelas deve ser considerada uma simples sucessão empírica de fatos sem conhexão lógica íntima, e cujo conhecimento pouco ou nada nos revelará sobre o que é a filosofia, cabendo inclusive dissolver este conceito numa multidão de coisas díspares. Mas, neste último caso, não se vê como meros fatos intelectuais inconexos poderiam se erguer como critérios de valor para julgar e impugnar a filosofia antiga, mesmo em nome de uma suposta noção de “progresso”, que, nessas condições, perderia todo conteúdo conceptual identificável. Portanto, ou o estado atual da filosofia é apenas o resultado de uma evolução lógica (se bem que não necessariamente a melhor ou a única possível) do próprio conceito originário de filosofia, nada significando sem referência a este, ou então ele não tem nada a ver exceto empiricamente com a filosofia antiga e não pode servir de base para julgá-la. Em qualquer dos dois casos, o primado da essência da filosofia sobre suas manifestações temporais é resolutamente afirmado, ainda que inconscientemente ou a contragosto.

Para esclarecer essa essência, temos de partir da sua concepção originária como visibilidade da sabedoria ou contemplação da imago Dei.

Ser e Conhecer – Introdução geral

 § 1. Formulação do problema

Aula do Seminário de Filosofia, São Paulo, 10 de março de 2001

Toda a tradição moderna em filosofia toma como fundamento e ponto de partida o reconhecimento dos limites da consciência cognitiva individual. É verdade que ela começa com a tentativa cartesiana de romper esses limites pela afirmação da certeza absoluta que o eu pensante tem de si mesmo enquanto pensante. Mas também é verdade que essa afirmação permanece subordinada ao reconhecimento daqueles limites, e isto sob três aspectos: (1) eles são o dado inicial do qual ela será apenas a conclusão parcial que não chega a impugnar a validade da dúvida baseada neles; (2) o cogito que se afirma tem a impotência congênita do eu solipsista, que não pode escapar de seus próprios limites senão pelo apelo a “Deus” – um Deus que, não tendo aí nenhuma função orgânica, não sendo nem mesmo o fundamento do eu como o era no cogitoagostiniano, entra no sistema como puro agregado externo e expediente lógico in extremis, para salvar a  construção vacilante; (3) impotente para lançar uma ponte para o mundo exterior, o cogito cartesiano não o é menos para lançá-la entre ele próprio enquanto pensante e… enquanto existente.

Quando Péguy, num texto célebre, festeja Descartes como “ce chevalier qui partit d’un si bon pas”, ele expressa da maneira mais eloqüente o fato de que a tradição moderna valorizou em Descartes antes o seu ponto de partida (a dúvida) do que o seu ponto de chegada (a certeza do cogito). Mas isto é o mesmo que celebrar o fracasso do empreendimento cartesiano, louvando apenas as intenções que o inspiraram e que ele terminou por frustrar. Certeza vazia, incapaz de fundar a ciência, o cogitocartesiano deixou menos marcas na origem da tradição moderna do que as deixou o método mesmo da dúvida, a idéia de repor tudo em questão e, como se diria depois, “raciocinar sem pressupostos”. Essa idéia, que pervade todo o ciclo moderno em filosofia, expressa, no mínimo, o sentimento dos limites da consciência individual, sentimento que constitui assim o terreno psicológico sobre o qual floresce o pensamento moderno.

A variedade de suas expressões não deve nos fazer perder de vista a unidade desse sentimento básico. É preciso enxergá-lo não só nas suas manifestações diretas e patentes, como também nas indiretas e esquivas: não só no ceticismo de Hume ou na crítica kantiana, mas também nas tentativas de transferir para a alçada de algum outro sujeito – seja ele o Espírito objetivo, a volonté génerale, o Volkgeist, a consciência de classe, o Id, o inconsciente coletivo, as estruturas da linguagem, o consenso da comunidade científica, o gênio da espécie – a responsabilidade pela garantia da veracidade e eficácia do conhecimento. A simples enumeração casual de algumas dessas tentativas já evidencia que a afirmação dos limites ou da impotência cognitiva da consciência individual, quando não é princípio claramente afirmado, é pressuposto implícito; e, quando não ocupa o centro do sistema, circunscreve e delimita o seu horizonte.

Por trás da variedade e discordância das escolas, delineia-se assim um fundo de unanimidade – a unidade negativa daquilo que, para simplificar (e por outros motivos que se tornarão claros mais adiante), denominarei negação da consciência.

O que é curioso nesse fenômeno não é apenas a sua generalidade, sua quase onipresença no panorama heterogêneo do pensamento moderno; é que essa quase onipresença tenha sido apenas displicentemente reconhecida, como se se tratasse de obviedade sem maior importância, indigna de atrair qualquer curiosidade especial ou de suscitar ao menos a pergunta: Por que?

Sim, tudo aquilo que embora reconhecido não se afirma de maneira clara e explícita continua oculto entre névoas, protegido de todo olhar iluminante capaz de ressaltar o que nele há de estranho, de portentoso, de supremamente incomum e problemático.

De repente, a pergunta que não se fez pode se revelar como a mais relevante de todas. E a pergunta, no caso, é: como foi possível que toda uma tradição filosófica de quatro séculos, digamos mesmo toda uma civilização, tomasse como fundamento óbvio e inquestionável do conhecimento as limitações e deficiências do poder cognitivo da consciência individual, e raciocinasse sempre a partir delas, sem que, precisamente, essas limitações mesmas  viessem jamais a ser questionadas e sem que jamais à negação se opusesse qualquer tentativa de afirmação?

Como foi possível que uma pretensão cognitiva tivesse tantos impugnadores, sem que houvesse defensores?

Pois mesmo aqueles que, nesse período, afirmam resolutamente o poder do conhecimento, como Spinoza ou Hegel, celebram apenas a virtude cognitiva da razão, considerada de maneira universal e abstrata, e não da consciência individual concreta, cujos limites e cuja fragilidade eram assim implicitamente afirmados na medida mesma e no momento mesmo em que, enaltecendo “a razão”, se dava por pressuposto que era mediante sua absorção nela e sua conversão despersonalizante em faculdade abstrata que a consciência individual concreta poderia ter a esperança de conhecer o que quer que fosse.

Ora, se cada um desses filósofos era apenas indivíduo humano concreto, sem poder alegar-se a priori detentor de meios de conhecimento superiores aos da individualidade humana, a pergunta é: desde onde eles impugnam a eficácia desses meios, os únicos de que dispõem?

Se o filósofo moderno não pudesse colocar-se, de algum modo, numa posição superior à da sua mera individualidade empírica, sua negação do poder cognitivo desta última equivaleria apenas à autoparalisação de uma consciência individual e à imediata desmobilização de todo esforço filosófico. Em vez disso, vemos o movimento filosófico alimentar-se dessa negação, progredir graças a ela, revigorar-se nela.

À negação da consciência individual parece corresponder, ipso facto, a afirmação de um poder cognitivo supra-individual que o filósofo incorpora e personifica a partir do instante mesmo da negação e por mérito dela.

Que poder seria esse? Quais as suas possibilidades e limites? Que títulos justificam a pretensão filosófica de representá-lo? E, sobretudo: seria ele efetivamente uma instância superior à consciência individual ou apenas a parte superior da própria consciência individual, separada das partes inferiores e hipostasiada como entidade independente?

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