Mendo Castro Henriques

Euronotícias, 17 de agosto de 2001

O Ministério da Educação anda a ser acusado por alcançar o que nem a Inquisição conseguiu: proibir Camões. Mas o que se passa é muito mais grave. Andam, sim, a proibir a capacidade de perguntar, a liberdade que só nasce quando aprendemos a pôr questões em conjunto com as grandes vozes e textos da humanidade, neste caso, em português.

O que está à vista é assustador. No Programa de Língua Portuguesa para os 10º, 11º e 12º anos dos Cursos Gerais e Tecnológicos, com 77 páginas, e que formará a mente de uns 90.000 adolescentes por ano, a partir de Outubro de 2002, o primeiro autor referido vem na p.36, e é Camões; os seguintes vêm na p.41: Vieira, Garrett e Eça; o último vem na p. 46, Pessoa, por suposto Fernando. Depois, Camões e Pessoa na p.61. E não há mais nomes, nem autores, nada. Em 77 páginas, é obra.

O que se passa é que a revisão curricular nivela por baixo os antigos Português A e B num único programa para cada ano do Secundário. Se os antigos programas do 10º ano tinham as líricas medievais e renascentistas, o actual propõe textos: “informativos”, “publicitários”, “dos media”, “de carácter autobiográfico”, “expressivos e criativos do séc XX” e “contos/novelas de autores do séc. XX”. Está-se a ver a “Lírica” de Camões a par das “Sandálias de Prata”, do Herman José, e da prosa de anúncios, requerimentos, declarações, e contratos. No 11º resistem Garrett, Vieira, e Eça reduzido a um romance. No 12º ano, vem Camões aliado a Pessoa. E mais “textos “, informativos, e dos media.

Perante este espectáculo, elementos do PSD denunciaram “um deplorável complexo de esquerda retrógrada que tem vergonha do passado de Portugal”. No PP, fala-se numa “tentativa de demolição nas gerações mais novas de factores preciosos da identidade portuguesa”. O presidente da CNAP refere “Os Lusíadas” como “documento histórico e cultural importantíssimo”. Elementos da esquerda aproveitaram para denunciar “os burocratas do ministério”; outros fizeram o elogio da literatura pura e “da festa da língua” violentadas por este programa inqualificável. Poucos lembraram como Teófilo começou a abalar a monarquia com o jubileu nacional de Camões, em 1880, em que “Os Lusíadas” “tornou-se para os portugueses o depósito dos germens da sua liberdade”.

Pormenor decisivo: os mais de 120 títulos da bibliografia do novo programa não incluem um estudo sequer sobre Camões, Garrett, Vieira, Eça ou Pessoa. Podia-se estar a falar de livros de cozinha, de manuais de Gulag, de literatura oriental ou de quaisquer outros textos. É o deserto dos conteúdos, recoberto da areia cinzenta das ciências ocultas da educação.

E por aqui se começa a perceber que o problema não é só “acabar com “Os Lusíadas” mas sim acabar com a capacidade de pôr questões. Há já muitos anos que “Os Lusíadas” não são dados na íntegra. Os alunos do secundário liam pouco mais de uma centena de entre as suas 1102 estrofes. Mas agora na ânsia de satisfazer os jovens sem paciência para ler, e dar-lhes textos à altura deles, esqueceu-se que a melhor aprendizagem da língua é a que resulta dos momentos literários culminantes e não dos usos banais. E isso requer interpretações.

A “História da Literatura Portuguesa”, de António José Saraiva e Óscar Lopes, formou uma geração inteira de professores de Português numa síntese instável de humanismo e marxismo. Sem obras de referência, Os Lusíadas e outros clássicos são ininteligíveis para o leitor comum. O que se reclama de cada época é que traga explicações inovadoras, conforme os paradigmas culturais, as perspectivas de comunicação e a sensibilidade estética. Por isso existem enormes bibliografias secundárias sobre a literatura portuguesa, e espectaculares meios audio-visuais e informáticos para auxiliar o estudo.

O cinzentismo do actual programa ignora tudo isso em nome das fatídicas Ciências da Educação. Está por fazer um balanço objectivo dos males que estas infligiram em trinta anos de Ministérios de Educação iniciados pelo Professor Químico Veiga Simão. Mas vê-se pelos resultados, e com horror, que o neo-positivismo dominante nas Ciências da Educação é um cancro da inteligência portuguesa. Opera com esplendor catedrático no que se refere às formas didácticas e como despachante de alfândega no que toca aos conteúdos. Aqui a responsabilidade é da Universidade Portuguesa, mais depressa liquidada pela relativização dos conteúdos que pela falta de vencimentos.

Já quanto à “política cultural”, a responsabilidade é do Governo, que desfaz de noite a rede tecida durante o dia. De dia manda o Ministério dos Negócios Estrangeiros celebrar a lusofonia, o Instituto Camões difundir a língua portuguesa, a Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos divulgar o encontro dos povos, o Ministério da Ciência e Tecnologia financiar projectos de literatura de viagens, o Ministério da Cultura apoiar espectáculos camonianos. E pela noite, na cabecinha alegadamente rasca dos alunos portugueses, manda o Ministério da Educação apagar os vestígios da língua, do humanismo, e do universalismo do vate. Homero diz que Penélope esperava pelo marido. O Governo desespera (d)os portugueses.

Por fim, verifica-se que não basta desfazer-nos da Santa Inquisição e da PIDE fisicamente violentas, que proibiam as respostas. A Nova Inquisição educativa, mentalmente brutal, proíbe as perguntas: apenas permitirá comunicar no nível rebaixado do novo ensino.

Manda o bom senso que em Portugal se ensine e aprenda Camões, Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, António Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Bocage, Camilo, Antero, Cesário, Vergílio Ferreira, Torga, com igual entusiasmo com que os ingleses lêem Shakespeare, os espanhóis Cervantes, e os italianos Dante. Só mesmo os textos das famigeradas Ciências da Educação é que são idênticos em todas as línguas europeias.

 

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