Entrevista de Olavo de Carvalho a Zora Seljan

Jornal de Letras
, Academia Brasileira, julho de 2000

1 – O que é ser filósofo?

É acreditar piamente na capacidade humana de compreender a realidade — e apostar a vida nessa crença. A apoteose da razão começa com um ato de fé. Hegel já dizia isso: sem a fé no poder do espírito, nada de investigação filosófica. A filosofia, como o reino dos céus, não foi feita para os tímidos e recalcitrantes. Mas a essa primeira aposta segue-se um compromisso, que é o de nada ignorar da realidade propositadamente. O filósofo tem de abrir-se inteiramente à variedade dos fatos que se apresentam, sem se refugiar em explicações prematuras. Em vez de inventar explicações, tem de esperar que a realidade as sugira e as comprove, mesmo que, nessa espera, ele arrisque ficar quase louco na confusão dos dados. Por isso não gosto de chamar os filósofos de “pensadores”. Pensar é fácil. O difícil é pensar as coisas como são – e para isto é preciso contrariar muitas vezes o nosso pensamento, obrigá-lo a ir para onde não quer. Por isso, também, não vejo diferença substancial entre filosofia e ciência. As ciências são apenas estabilizações provisórias de certas investigações filosóficas, para as quais se encontrou um método consensual que pode ser praticado uniformemente por toda uma comunidade, mas que, de tempos em tempos, são dissolvidas de novo no mar do questionamento filosófico profundo.

2 – Como vê a situação atual dos estudos filosóficos no Brasil?

Desastrosa, embora menos do que seria de esperar. Revistas como a “Presença Filosófica”, a “Revista Brasileira de Filosofia” e a “Síntese” de Belo Horizonte (que não sei se ainda circula) salvam a nossa honra. Mas, no geral, o que se vê é empulhação ideológica mais rasteira dominando o cenário. Só para dar um exemplo: a capacidade quase instintiva para distinguir entre um conceito e uma figura de linguagem é a marca do talento para os estudos filosóficos, a condição inicial para o ingresso na filosofia. Nossos filósofos acadêmicos mais badalados, depois de décadas de estudo, ainda não adquiriram essa habilidade elementar. Só se ocupam de espalhar entre os alunos a confusão e a obscuridade de suas almas toscas, e compensam sua miséria interior mediante a participação exibicionista em campanhas políticas. O pior é a moda da filosofia para crianças, um cabide de empregos e um abuso da inocência infantil: a filosofia não é coisa para crianças, como supõe o nosso execrável Ministério da Educação. Alquimicamente falando, a filosofia é o enxofre que cristaliza o mercúrio, a mente volátil, para produzir o sal – a alma perfeita. A cristalização prematura é um desastre alquímico, o congelamento da alma. Os professores de filosofia estão ajudando nossas crianças a sufocar suas percepções autênticas sob um discurso pseudo-intelectual de um artificialismo desesperador.

3 – Como unir senso de humor, eloquência de argumentação e lucidez filosófica?

Essas coisas vêm sempre juntas ou então não vêm. O fundador da tradição filosófica, Sócrates, era uma síntese das três. Platão não ficava atrás. E até os escritos que nos restaram de Aristóteles, meros rascunhos técnicos para exposição em classe, deixam transparecer o fino senso de humor que certamente animava suas conversações com os alunos.

4 – Sua reinterpretação de Aristóteles pode levar-nos a uma visão unificada de toda a filosofia grega?

Sinceramente, espero que sim. Aristóteles estava muito consciente da sua posição no quadro evolutivo da filosofia que o antecedeu, e todo o seu pensamento é não apenas uma reflexão sobre essa evolução, mas quase a materialização dela sob a forma de ordem e sistema – como quando você ouve uma melodia e de repente percebe essa seqüência temporal sob a forma de um desenho, de um gráfico: o tempo que vira espaço. Primeiro os gregos conheceram o discurso mitopoético das epopéias e da lírica, depois o discurso retórico dos sofistas, depois a dialética de Sócrates e Platão e por fim a estrutura lógica revelada por Aristóteles. Essa seqüência histórica é idêntica à própria estrutura interna do sistema de Aristóteles, tal como acredito havê-la desvelado na “teoria dos quatro discursos”. Esse fenômeno de um sistema no qual se refaz e se perfaz conscientemente a evolução histórica é um grande milagre do espírito. Alguns místicos islâmicos consideram Aristóteles um profeta, e acho que têm razão.

5 – Como foi sua experiência recente na Romênia, suas conferências lá, seu contato com escritores e universidades da terra?

A Romênia é hoje a minha segunda pátria. Tenho tantos amigos lá quanto no Brasil, e nenhum inimigo exceto o frio. Também tenho ótimos amigos entre os romenos que vivem aqui, como Gheorghe Legmann, valente batalhador em prol das relações Brasil-Romênia. Os romenos são um povo cultíssimo, com a alma aprimorada pelo sofrimento. O número de sábios “per capita” lá é impressionante. É também um país lindíssimo, a maior reserva natural da Europa, com florestas cheias de ursos e lobos que nunca ouviram falar de crise ecológica nem do Ibama. Mas os países vizinhos não deram à Romênia a menor chance. Invadiram e roubaram a infeliz o quanto puderam, e lhe impuseram a camisa-de-força dos regimes totalitários, primeiro o nazismo, depois quarenta anos de comunismo. Hoje os romenos, espoliados pela Nova Ordem Mundial, são um povo cansado, esgotado, descrente, com dificuldade para enxergar suas próprias qualidades mais óbvias. No entanto, no meio da mais negra miséria, não perdem o gosto de estudar. São um exemplo para os brasileiros, que só admitem o estudo como meio de arranjar emprego ou de adornar conversações de salão. Os romenos adoram o Brasil (deram até o nome de Copacabana a uma praia no Mar Negro, e o hino da seleção romena de futebol é um samba), e a nossa presença lá faz bem a eles. Talvez ninguém tenha feito mais para melhorar a auto-imagem dos romenos do que o embaixador brasileiro, Jerônimo Moscardo, hoje um imbatível “pop star” em Bucareste. Acho que todo brasileiro deveria passar um tempo lá para ver o que é dignidade na miséria e para deixar de chorar de barriga cheia. Bucareste é a capital mais pobre da Europa – e a mais pacífica. Simplesmente não há assaltos à mão armada. Quando volto a este nosso país onde um frango assado custa dois dólares, fico perplexo ante a classe média tão gordinha e tão revoltada, que só reclama da vida e que justifica a violência em nome da “miséria”: queria que essa gente fosse ver os milhares de meninos de rua que em Bucareste têm de se esconder no esgoto durante o inverno, e que vêm nos pedir esmola em inglês, francês ou alemão, com um ar de inocência que dia a dia vai desaparecendo dos olhos das nossas crianças, corrompidas por falsos educadores.

6 – Como vê a obra de Emil Cioran no pensamento de nosso tempo?

Cioran não pode ser lido ao pé da letra, senão você estoura os miolos, coisa que ele próprio não fez, o que mostra que estava ciente da dose de ironia dos seus escritos (ele dizia que era um farsante e que as pessoas perceberiam isso se o compreendessem). Cioran assume a palavra em nome do demônio, acusador da humanidade, e nos desafia a assumir a responsabilidade da defesa. Jogando entre verdades patentes e exageros verossímeis, ele sempre nos deixa uma brecha salvadora, e é precisamente nesses hiatos, nessas falhas propositais da sua argumentação, que reside o mais inteligente da sua obra, na verdade mais pedagógica ou psicoterapêutica do que filosófica. Cioran pode induzir você ao desespero, à resignação estóica ou a uma retomada da fé e da esperança. Ele pode ser um veneno ou um remédio: você decide.

7 – Dá-se bem com o computador?

Maravilhosamente. Foi uma afinidade à primeira vista. Na verdade, acho que eu nunca teria publicado livros se não existisse computador: foi ele, e só ele, que me permitiu colocar em ordem escritos acumulados ao longo de vinte anos. E hoje a internet é meu principal meio de informação.

8 – Acha o exercício do jornalismo regular importante na sua obra?

Quando a gente escreve só para um círculo de alunos, como fiz por muito tempo, tende a criar um estilo compacto, cheio de abreviaturas e subentendidos, que no fim vira um negócio hermético, ou então a multiplicar as explicações com um didatismo minucioso que se prolonga demais. Voltar ao jornalismo regular foi uma disciplina muito saudável, que me obrigou a exercícios diários para conciliar aquilo que Horácio considerava inconciliável: brevidade e clareza. De outro lado, isso me deu a oportunidade de colocar em circulação idéias que vim “chocando” na solidão ao longo de vinte anos, e que me parece que podem ser úteis para o Brasil.

9 – Signo, preferências, família.

Signo: Touro com ascendente Aquário (como Karl Marx, droga!), Lua em Leão, Marte e Mercúrio em Áries, Júpiter culminante no Escorpião.

Preferências: Livro – A Bíblia e o Corão, as escrituras hindus no comentário de Shânkara, a Metafísica de Aristóteles, a Divina Comédia, Dostoiévsky inteiro, Walter Scott e Pío Baroja selecionados, poesias de Camões, Antonio Machado e William Butler Yeats. Comida – Churrasco. Bebida – Café. Hobby – Fumar em lugares proibidos. Bichos – Cães e cavalos. Roupa – A mais barata. Perfume – Água e sabão. Cigarros – Ducados,espanhol, e Romeo y Julieta, cubano, da mesma fábrica dos charutos (cigarros bons são o meu único luxo). Música – Canto gregoriano; Bach; Haendel; Wagner; velhas canções italianas e irlandesas; música caipira de qualquer parte do mundo. Sonho de consumo: um “Irish wolfhound”. Custa uma nota e come muito.

Família: a melhor coisa do mundo. Pena que os filhos sejam apenas oito.

10 – E o futuro? Qual é o lugar do Brasil no mundo?

Acho que o Brasil passa pelo momento mais difícil e mais decisivo da sua História. Temos o sonho de ser uma nação e temos o direito de sê-lo, mas, no momento em que estamos quase para realizar esse sonho, as nações já não estão na moda e o governo mundial avança a passos de gigante. Nosso desafio é provar que somos capazes de representar os ideais superiores da humanidade melhor do que o governo mundial. Mas, para isso, precisamos de três coisas: absorver rapidamente o legado espiritual de todas as civilizações, aprender a esquivar-nos das alternativas ideológicas estereotipadas com que a estratégia mundialista nos divide, e superar um falso nacionalismo nativista, complexado e debilitante, que é hoje facilmente manipulável pelas esquerdas vendidas à Nova Ordem Mundial. Temos de criar um novo nacionalismo, capaz de competir no mercado mundial. Costumo chamá-lo de nacional-liberalismo, com a ressalva de que não é um sistema ideológico mas apenas um arranjo de ocasião, uma solução brasileira de improviso.

O maior obstáculo são os intelectuais, fortemente apegados a esquemas ideológicos absurdos, a ressentimentos antimilitares que são muito bem aproveitados (e bem pagos) pela estratégia mundialista para nos debilitar, e a ódios pessoais racionalmente inexplicáveis, como essa birra contra o Roberto Campos, um homem que, no campo das ações e não do blá-blá-blá, fez mais pelo Brasil do que toda a esquerda reunida. Para dobrar essa gente, só mesmo a paciência do Antônio Olinto.

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