A lição de um sonho

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de dezembro de 2013

          

Trabalhando dia e noite na reforma do meu escritório, cansado de serrar e martelar estantes para cinco mil livros, deixei cair um pesadíssimo arquivo que quase esmigalhou o meu dedão do pé direito. Para prevenir infecção, os médicos me deram um maldito antibiótico que provocou náuseas, diarréia, dor de cabeça, dispepsia e umtotal desgosto de viver. Assim fragilizado, pela primeira vez na vida senti alguma tristeza diante de tanto ódio imbecil e sem motivo que se joga sobre mim no Facebook, em blogs e por toda parte onde haja cretinos ansiosos para opinar. Nunca tinha sentido isso antes, mas uma noite destas tive um sonho que deve indicar alguma coisa.
Eu estava perdido na estrada, a pé, de madrugada, por ter descido do ônibus no lugar errado, procurando um Walmart inexistente. Não havia perigo, porque eu estava armado, mas andava e andava e não chegava a parte alguma nem via nada em torno, só escuridão. Então apareceu um carro, e eu, na esperança de uma carona, lhe fiz sinal. Havia dois homens dentro, um deles desceu, disse que me conhecia e começou a falar mal de mim. Pedi que expusesse alguma idéia minha, e confirmei que ele não conhecia nenhuma delas, só o que sabia de mim eram fantasias. Vi que dali não ia sair carona nenhuma e, só de sacanagem, encostei o cano do revólver na barriga do sujeito para forçá-lo a me levar para algum lugar onde eu pudesse tomar condução. Ele teve um piripaque, desmaiou e quando acordou estava totalmente idiota, não lembrava quem era nem o que estava fazendo ali. O outro homem havia desaparecido. Pensei: “Este aqui me odeia tanto que acreditou, seriamente, que eu ia matá-lo; daí ficou aterrorizado e entrou em pane. E agora, que é que eu faço com esse f. da p. delirante caído na estrada, sem o raio deum hospital por perto?” Não conseguindo resolver esse problema, acordei.
Esse sonho expressa uma verdade psicológica fundamental, da qual tomei consciência, por assim dizer, na carne: o ódio histérico e sem motivo traz em si mesmo o seu próprio castigo; inspira um temor desproporcional da coisa odiada e se volta contra o seu portador.
Jamais serei suficientemente grato ao dr. Andrew Lobaczewski, o médico psiquiatra que durante anos estudou o comportamento da elite comunista polonesa e chegou a conclusões altamente esclarecedoras sobre a relação entre psicopatia e histeria na política e na sociedade.
Ilustrando o fenômeno exemplarmente, o Brasil de hoje é a típica sociedade histérica governada por psicopatas, que o dr. Lobazewski descreve em “Political Ponerology”.
Numa alma bem estruturada, as emoções refletem espontaneamente o senso das proporções e a realidade da situação. A afeição, a esperança, o temor, a ansiedade, o ódio são proporcionais aos seus objetos e, nesse sentido, funcionam quase como órgãos de percepção. Afiná-las para que cheguem a esse ponto é o objetivo de toda educação das emoções. Na sociedade histérica, porém, cada um só pode alcançar esse objetivo mediante umtremendo esforço de tomada de consciência e de auto-reeducação. O que deveria ser simplesmente o padrão da normalidade humana torna-se uma árdua conquista pessoal.
O filósofo romeno Andrei Pleshu, que conheceu o Rio de Janeiro quarenta anos atrás, dizia, brincando: “O Brasil é um país onde ninguém tem a obrigação de ser normal.” Com o tempo, o gracejo, como tantos outros, se transfigurou em tragédia: no Brasil dos nossos dias é proibido ser normal. O mero senso das proporções é estigmatizado como preconceito fascista, e não há alternativa senão acompanhar o fingimento histérico geral que não acredita no que vê, mas no que imagina. O ódio histérico ao que se desconhece tornou-se obrigatório, prova de boa conduta.
Para avaliar o quanto a alma brasileira se deteriorou ao longo das últimas décadas, basta ler as observações do gringo que detestou a experiência de viver neste país (ver aqui) e compará-las à noção do “homem cordial” criada nos anos 30 do século XX por Sérgio Buarque de Hollanda e desenvolvida numa discussão com Ribeiro Couto e Cassiano Ricardo. Na época, a “cordialidade” podia até parecer um traço saliente do brasileiro em geral, mas setenta mil homicídios por ano, Black Blocks na rua e a profusão de gente espumando de raiva contra o que ignora fazem-no soar como piada cínica.
A reeducação das emoções é impossível sem passar primeiro pela reeducação da inteligência, de modo que esta assuma, pouco a pouco, o comando da alma inteira e se torne o centro da personalidade em vez de umpenduricalho inútil a serviço da autojustificação histérica.Ser inteligente é, nesse sentido, como já lembrava Lionel Trilling, a primeira das obrigações morais. Sem inteligência, até as virtudes mais excelsas se tornam caricaturas de si mesmas.

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