Yearly archive for 2014

As filosofias e sua estrutura

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 9 de outubro de 2014

          

A estrutura de uma filosofia é o que ela tem de mais patente e de mais oculto ao mesmo tempo. Patente, porque está presente em todas as suas partes, mesmo as mais ínfimas e humildes, as quais nada são fora dela. Oculto, porque só está presente no fundo, como chave de travamento do conjunto, e jamais como parte ou tema explícito em qualquer das partes.

O filósofo que tomasse como tema a estrutura da sua própria filosofia, para discorrer sobre ela, já a estaria assim, nesse mesmo momento, inserindo como parte numa estrutura maior.

Uma das consequências disso é que a estrutura não pode ser revelada por nenhuma “análise de texto”, por mais meticulosa e bem cuidadinha que seja, a qual só leva à estrutura da exposição, ou da obra escrita, cuja relação com a estrutura da filosofia propriamente dita é variada e ambígua. O método para apreender a estrutura de uma filosofia tem de partir dos seguintes princípios:

(1) Toda filosofia, por abstrata e desinteressada que pareça, é uma intervenção no curso dos negócios humanos. Visa sempre a modificar ou reforçar o estado de coisas na sociedade, na cultura, na ciência, na religião, nos costumes, ou mesmo na condição humana em sua totalidade.

(2) Para esse fim, procede a um exame em profundidade dos obstáculos, cognitivos ou de qualquer outra ordem, que impedem ou dificultam sua consecução, tentando criar os meios intelectuais e práticos para removê-los.

(3) Sua estrutura, portanto, define-se como uma articulação de fins e meios. Qual a meta histórico-cultural proposta e qual a estratégia, a um tempo cognitiva e persuasiva, usada para legitimá-la e viabilizá-la?

Dito de outro modo, a estrutura de uma filosofia só se revela quando o discurso em que ela se expressa é examinado não como um puro sistema de idéias e doutrinas, mas como uma ação humana, a intervenção de um indivíduo intelectualmente privilegiado na vida dos seus semelhantes supostamente menos dotados dispostos a ouvi-lo.

Ora, o exame de um discurso como modalidade de ação humana é o campo especializado dos estudos retóricos, da arte da persuasão. Para apreender a estrutura de uma filosofia, a articulação dos seus fins com os seus meios, é preciso portanto examiná-la desde o ponto de vista retórico, considerando-a como esforço de persuasão destinado a produzir, através de modificações na esfera cognitiva, determinados efeitos na vida histórico-social ou até na vida humana em geral.

O que faz com que essa obviedade seja frequentemente esquecida é que a exposição das idéias filosóficas se faz em geral por meio de um discurso lógico-dialético que despreza o apelo à persuasão retórica e pretende situar-se no campo da demonstração estrita, das certezas intelectuais imunes aos atrativos da oratória.

Acontece que esse discurso, enquanto tal, não é “a” filosofia, mas apenas o conjunto ou sistema de meios intelectuais pelos quais ela busca realizar os seus fins. Se o examinamos “em si mesmo”, sem subordiná-lo aos fins a que deve servir, perdemo-nos numa infinidade de “problemas filosóficos” ou acidentes de percurso, sem jamais atinar com a estrutura da filosofia em questão, a qual estrutura consiste precisamente na articulação dos fins com os meios.

No empenho de discernir essa estrutura, é necessário compreender o discurso lógico-dialético como parte e instrumento de um esforço de persuasão, isto é, de um empreendimento que, visto no conjunto, não é e não pode ser senão de ordem retórica.

O método, pois, para descobrir a estrutura de uma filosofia, reside na análise retórica do seu discurso, discernindo nele os quatro elementos que nos tratados clássicos definem todo discurso retórico: a “situação” de discurso, isto é, o quadro histórico, social, cultural e psicológico onde ele emerge e no qual pretende intervir; o “juiz”, isto é, o público em especial a que se dirige e sobre o qual pretende influir; o “objetivo” ou meta, isto é, a modificação específica que pretende introduzir no quadro; e por fim o “discurso” mesmo, isto é, o conjunto de meios de argumentação, prova e persuasão colocados em ação para realizar esse fim.

Felizmente, o objetivo ou meta – o “para quê”, em última análise, o filósofo está fazendo o que faz – vem explicitamente declarado na maior parte das filosofias. Basta procurá-lo.

A dificuldade reside em que nem sempre ele consta das partes consideradas mais importantes ou mais nobres da obra filosófica – às vezes só aparece em cartas pessoais ou trabalhos menores –, de modo que o estudioso, especialmente quando adestrado numa tradição de ensino que privilegia a análise dos textos enquanto tais e se concentra nos de maior prestígio, pode se perder num emaranhado de dificuldades de percurso e não chegar jamais a perguntar-se para onde, afinal, o filósofo o está levando. É assim que a mais requintada sofisticação dos meios de análise pode se tornar uma apurada técnica de não entender nada.

Embora eu não conheça nenhum caso em que o objetivo tenha permanecido totalmente oculto, o filósofo pode ter um bom motivo para mantê-lo discreto, quando o considera perigoso ou revolucionário demais para poder, sem escândalo, ser exibido em público nas partes mais nobres e vistosas da sua obra escrita. Neste caso é necessário procurá-lo em escritos menores e de ocasião, cuja importância estratégica no conjunto escapa à atenção do analista vulgar, deslumbrado ante o prestígio das “grandes obras”. É esse, precisamente, o caso de Immanuel Kant (na ilustração), de Descartes e de Maquiavel.

Meditação e consciência

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de setembro de 2014

Um dos aspectos mais tristes da vida brasileira, para este comentarista, é a escassez ou completa ausência de atividade espiritual naquilo que se escreve e se publica, seja em livros, na mídia ou mesmo em blogs. Por atividade espiritual entendo a meditação solitária em que a consciência toma posse de si mesma como autocriação e liberdade que luta para realizar-se no mundo espaçotemporal e aí encontra, ao mesmo tempo, seus obstáculos e seus instrumentos.

É só apreendendo assim a medida e a proporção entre aquilo que podemos ser e aquilo em que vamos nos tornando, que chegamos a nos conhecer como natureza inseparavelmente criada e criadora, no sentido de Scot Erígena, indescritível portanto como figura e imagem e só apreensível como força e conflito até o momento em que a morte, como nos ensina o soneto de Mallarmé, nos fixa para sempre no formato imutável de um destino realizado e esgotado.

Só quem se dedica incessantemente a essa atividade pode pronunciar a palavra “eu” com algum conhecimento de causa, ou até com algum direito legítimo. Os demais, quando a dizem, nada mais designam do que a figura totalmente fictícia que desejariam, para fins de vantagem prática ou alívio de complexos, projetar na tela da mente alheia ou na da sua própria.

Se o não-meditante só se apreende a si próprio na sucessão de camuflagens que ele denomina erroneamente “eu”, por trás das quais nada existe senão um vago sentimento de culpa e de angústia empenhado perpetuamente em negar-se, é óbvio que aquele que vive nessa condição não pode nem comunicar-se verdadeiramente com os seus semelhantes, apenas usá-los como personagens num teatro interior que eles desconhecem, nem pode, por outro lado, conhecer Deus, seja para negá-Lo ou afirmá-Lo, senão como uma gigantesca figura de ficção sempre disponível para reforçar, aliviar ou encobrir a culpa e a angústia.

Pela consciência clara da nossa criatividade parcial e limitada entendemos que a existência de bilhões de outras pequenas forças criadoras em torno de nós manifesta uma criatividade infinita e assim chegamos a ter um vislumbre de Deus como Ato Puro, sem forma nem figura porque criador incessante de todas as formas e figuras. Foi esse Deus que disse de Si mesmo: “Eu sou o Eu-Sou”. Só Ele tem propriamente um “Eu”, porque o Eu é fonte criadora sem figura nem forma, cujo análogo o ser humano só se torna, e mesmo assim parcialmente, mediante o ato de liberdade que aceita e assume ser a imagem e semelhança de Deus.

Não se confunda, por outro lado, a meditação com a confissão religiosa nem com o exame de consciência. Ela é a condição prévia que dá substância espiritual a essas duas atividades e sem a qual se reduzem a uma catalogação mecânica de atos e de pensamentos vergonhosos, sem a menor noção da sua raiz interior bem como da sua função dialética na luta pela auto-realização da consciência.

Talvez o maior dos pecados, o verdadeiro crime contra o Espírito Santo, resida em permitir que as faculdades pensantes se desgarrem do centro meditativo e criativo, adquiram autonomia e se afirmem até como supremos caracteres distintivos do ser humano.

Quanto mais essas faculdades se aprimoram, mais forte é a tendência de alienar a elas um poder e um prestígio que, de direito, pertencem tão somente ao “eu” propriamente dito.

Pior ainda quando, consagradas em códigos formais mais ou menos uniformes e impessoais, se impõem desde fora ao indivíduo, corrompendo-o até à medula e premiando sua alienação com o aplauso acolhedor de alguma comunidade intelectual ou acadêmica.

Quanto mais se apoia nesses códigos, acreditando com isso provar a força do seu intelecto, mais o cidadão sacrifica sua progenitura por um prato de lentilhas, tornando-se uma personificação viva da “ciência sem consciência”.

Nada exemplifica isso com mais clareza do que a redução da filosofia à análise lógica da linguagem, que ainda hoje, sob formas mais diversificadas ou camufladas, fascina estudantes imaturos ávidos de aprovação acadêmica. Esses estudantes mostram, muitas vezes, ter uma ou várias habilidades intelectuais desenvolvidas até níveis excepcionais. Só lhes falta o eu autoconsciente que as ata uma às outras e as sintetiza na forma de uma “personalidade”, sem a qual toda presunção de responsabilidade intelectual não passa da obediência a um código externo, isto é, de um arremedo teatral.

Ao lado e em contraste com a mera homogeinização ideológica, que de certo modo é menos grave, essa patologia afeta atualmente uma boa parte dos estudantes de filosofia e ciências humanas no Brasil, especialmente os da dita “direita”, augurando para as décadas vindouras, quando a intoxicação marxista passar, a sua troca por uma forma de alienação ainda mais esterilizante e difícil de curar.

Sinais de uma interioridade autêntica são praticamente ausentes nos debates públicos e na produção acadêmica deste País, que, sob esse aspecto, assim como sob tantos outros, já viveu dias melhores.

Desconversas científicas

 Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 28 de setembro de 2014

          

No meio científico americano, e excluídas as opiniões dos apologistas professos desta ou daquela religião, o debate sobre a questão religiosa divide-se, grosso modo, entre os que juram, como Daniel Dennet e Sam Harris, ser a religião uma etapa superada na evolução biológica da espécie humana e os que afirmam que a crença religiosa, ou ao menos uma vaga aspiração metafísica, é uma necessidade permanente, imutável e indestrutível dos seres humanos. Estes últimos chegam a acreditar que não existem ateus de verdade, que o ateísmo é só da boca para fora (ver mais aqui).

Os argumentos a favor de cada uma dessas correntes são eruditíssimos e ambas fazem questão de apoiar-se nas mais atualizadas pesquisas científicas. É uma pena que tanto esforço intelectual se desperdice numa discussão que parece ser calculada para não levar a parte alguma.

Desde logo, os dois lados dão por pressuposto que a religião nasce de uma “necessidade de crer”, esquecendo que a “fé” (mesmo aceitando-se a premissa falsa de que ela se reduza à mera crença) é um elemento distintivo e típico do cristianismo, ausente ou rarefeito em quase todas as demais religiões mundiais e numa infinidade de tradições religiosas menores.

Para um chinês do século 5 a.C. ou para os índios tupinambás do tempo de Pedro Álvares Cabral, a religião oficial era a própria ordem social e até a ordem do universo material. Como tal não constituía matéria de crença, mas de obediência, rotina e senso prático. Perguntar se acreditavam nela seria como perguntar se acreditavam na existência de chuva.

A opção de crer ou não crer só aparece em fases muito mais diferenciadas da evolução cultural (como por exemplo na Atenas de Sócrates), quando as instituições políticas se destacam progressivamente das religiosas e abrem espaço para julgá-las e ser julgadas por elas. Esse momento coincide, segundo o clássico de Bruno Snell (The Discovery of the Mind, reed. Dover, 2011), com a descoberta do eu consciente.

Em segundo lugar, é impossível julgar uma necessidade psíquica sem ter decidido antes se o objeto dela existe ou não. Se existe um Deus, a necessidade de conhecê-Lo e de caminhar em direção a Ele é uma coisa; outra totalmente diversa é o impulso de inventá-Lo caso ele não exista. Transferir, portanto, o debate desde o problema da existência de Deus para o da necessidade de crer n’Ele pode parecer um modo inteligente de esquivar-se de controvérsias teológicas, reduzindo a questão às dimensões do que pode ser abordado com os recursos da ciência atual, mas é óbvio que toda discussão na qual o método determine kantianamente o objeto em vez de amoldar-se a ele não pode levar jamais a nenhuma conclusão válida sobre o objeto enquanto tal.

Em terceiro, o mais mínimo estudo das religiões comparadas mostra que elas são incomparáveis, que simplesmente elas não são espécies do mesmo gênero. Que pode haver de comum entre uma religião que promete integrar o homem no mundo físico e dar-lhe o domínio das forças naturais e outra que lhe pede que dê as costas a este universo, que aceite mesmo a miséria, a derrota e o fracasso nesta existência para obter a vida eterna num outro mundo totalmente inimaginável?

Se você lê o Corão, verifica que ali está um código civil inteiro, regulando todas as relações sociais, a propriedade, o comércio, o direito de família etc. Qualquer código diferente é um crime e deve ser abolido à força, por ordem de Deus. Ao cristão, ao contrário, o Evangelho recomenda que obedeça a qualquer código vigente, com total indiferença. Como supor que remédios tão heterogêneos atendam a uma mesma “necessidade”?

Em suma, o debate inteiro parte da premissa de que todas as religiões são “sistemas de crenças” – entendendo crença no sentido kantiano daquilo que se pode pensar, mas não saber.

O conteúdo das crenças sendo portanto indiscutível cientificamente, só resta estudá-las em si mesmas, fazendo abstração do seu objeto e dando por pressuposto que as religiões são fenômenos do imaginário coletivo, alheios à esfera da “veracidade”, que é própria da ciência.

Acontece que, dentre as religiões, pelo menos uma, o cristianismo, não proclama a crença em ideais etéreos e incognoscíveis, mas em determinados fatos da ordem histórica e natural, perfeitamente acessíveis ao estudo científico. O historiador pode averiguar se as profecias de Fátima se cumpriram ou não no prazo indicado e o médico pode atestar se as curas miraculosas efetuadas por meio do Padre Pio se realizaram ou não.

Ambos podem examinar pessoalmente as centenas de corpos intactos de santos católicos mortos há cinco ou dez séculos e investigar se fenômenos similares se observam ou não (já digo que a resposta é “não”) em outras religiões. O cristianismo é por excelência a religião do milagre, e um milagre que não se realize no domínio dos fatos, neste mundo visível, não é milagre de maneira alguma.

Reduzir todas as religiões a sistemas de crenças sobre o incognoscível é fazer abstração da diferença essencial entre o cristianismo e as demais religiões, ou seja: mutilar gravemente o objeto de estudo para encaixá-lo numa definição preconcebida. O debate inteiro, portanto, na mesma medida em que se pavoneia de científico, falha a uma das condições mais elementares do método científico e deve ser considerado uma gigantesca desconversa.

Veja todos os arquivos por ano