Yearly archive for 2000

Mãos limpas e jogo sujo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 7 de dezembro de 2000

A caça aos corruptos, reais e supostos, começou neste país por inspiração da “Operação Mãos Limpas” da Itália. O exemplo italiano ainda entusiasma muitos brasileiros bons, arrebatados na esperança de que os métodos purgativos funcionem tão bem em política como em gastroenterologia.

E, como entre essas pessoas há políticos, empresários, oficiais militares e donos de jornais, a repercussão da idéia e de suas aplicações práticas tem entre nós a amplitude oceânica de um “tsunami”, devastando tudo o que encontra pela frente: a classe política, a confiabilidade das instituições, a governabilidade do país, a própria noção popular de certo e errado, que, bombardeada por uma apocalíptica sucessão de escândalos, já está completamente embaralhada.

Que de tamanho esforço saneador não resultasse nenhuma elevação do nível de moralidade nem entre os políticos nem entre o povo; que a década de mais feroz empenho moralizante de toda a nossa história fosse também a de maior crescimento do banditismo, da crueldade e da sem-vergonhice; que da destruição de lideranças suspeitas não resultasse senão a ascensão vertiginosa dos comunistas ao estatuto de virtuais governantes do País – nada disso é capaz de levar aquelas bem-intencionadas pessoas a tirar da experiência a conclusão que ela impõe: que há algo de intrinsecamente perverso e daninho no cerne mesmo do “combate à corrupção”.

Ao contrário: quanto mais deplorável é o resultado, mais devotamente se empenham na ação que o produz, redobrando a aposta a cada novo desastre, tudo sacrificando no altar de uma obsessão higienizante que está levando o doente para o ralo junto com o vômito. Quantos homens de sincera convicção liberal não se dispuseram mesmo, nas últimas eleições, a apoiar candidatos comunistas, por julgar que vigaristas, batedores de carteiras e ladrões de galinhas são mais perigosos para o país do que uma facção notoriamente aliada aos narcoguerrilheiros da Colômbia!

Assim, aqueles mesmos de quem dependeria a salvação do País são os primeiros a entregá-lo nas mãos de seus algozes, como um pai de família que, para manter os filhos a salvo de garotas sedutoras, os pusesse sob a guarda de um velho pedófilo.

É que nenhum deles tem a menor idéia da origem e da verdadeira natureza da “Operação Mãos Limpas” cujo exemplo tanto enleva seus corações. Nenhum sabe que ela foi um dos capítulos mais sórdidos da história da escroqueria universal. Se o soubessem, teriam uma idéia do futuro que estão ajudando a preparar para o Brasil.

Foi o seguinte. Dez anos atrás, certos documentos desviados da URSS, que a maioria dos jornais se recusava a divulgar sob o pretexto de não querer reacender a memória da guerra fria, começaram a despertar a atenção da imprensa italiana. Eles provavam que o Partido Comunista Italiano havia recebido pelo menos US$ 4 milhões da KGB. Tão logo a coisa começou a agitar os meios políticos, suscitando no Parlamento apelos a uma devassa fiscal, o vento repentinamente girou de direção. É que, seguindo a estratégia gramsciana da “longa marcha para dentro do aparelho de Estado”, o PCI fazia duas décadas que estava colocando gente sua nos altos postos do Poder Judiciário, discretamente, sem ruído, aguardando o momento de utilizá-la. As denúncias sobre as verbas da KGB deram o sinal de que a hora havia chegado.

Acossado pelo Poder Legislativo, o PCI recorreu a seus fiéis magistrados, os quais, sob os holofotes glamurizantes da mídia internacional, desencadearam uma portentosa caça às bruxas entre os políticos anticomunistas. Todos os partidos foram devassados… menos, naturalmente, o PCI. Ao mesmo tempo, este tratava de se desmembrar em dezenas de organizações, algumas assumindo o discurso róseo do pós-comunismo, com o efeito óbvio de inibir por chantagem psicológica as almas liberais – pois qual delas desejaria ser acusada de reavivar feridas do passado em ex-comunistas que mostravam tamanha boa vontade em “modernizar-se”?

Praticamente todas as lideranças anticomunistas foram desmoralizadas e destruídas. Hoje o PCI, disfarçado sob a multiplicidade de suas denominações e protegido sob a imagem de retidão imparcial da magistratura, domina o panorama político da Itália, virtualmente sem oponentes. Idênticas operações foram realizadas em vários outros países europeus, cujas agremiações de esquerda, todas elas abençoadas pelas verbas da KGB (só para a França foram US$ 40 milhões), se erguem hoje sobre os cadáveres políticos de seus adversários desacreditados, como Helmut Köhl, investigados por delitos menores para que a corrupção suprema dos que se venderam aos inimigos de seus países pudesse permanecer oculta.

Tudo indica que o mesmo modelo estratégico foi adotado aqui. A prova é que, no meio de tantas denúncias, ninguém jamais teve a coragem de investigar os partidos de esquerda e muito menos as milionárias ONGs estrangeiras que lhes dão apoio.

Fora do tempo e fora de si

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 3 de dezembro de 2000

Numa época em que a guerrilha comunista domina um país vizinho e no Brasil um partido marxista-leninista com serviço secreto privado e uma bela retaguarda armada está em vias de chegar ao poder, qualquer resistência ao comunismo é, surpreendentemente, acusada de estar “fora de moda”. Ressoando aos ouvidos de um povo que tem um terrível complexo de atraso, essa acusação tem imediato efeito paralisante. Preso em flagrante delito de pedofilia, um brasileiro não sentiria tanta vergonha quanto ao ser denunciado como “demodé” ou “ultrapassado”.

Mas a acusação tem ainda uma nuance mais sutil: ela insinua que o anticomunismo está ultrapassado porque seu inimigo não existe mais; combater o comunismo é lutar contra fantasmas do tempo da guerra fria. A ditadura comunista que oprime um bilhão e trezentos milhões de chineses, vietnamitas e tibetanos não existe, Fidel Castro não existe, os guerrilheiros da Colômbia não existem, Chavez não existe e a revolução camponesa do MST também não existe: nós é que, por sermos retrógrados e desinformados, resistimos às suas agressões como se eles existissem. Se fôssemos pessoas modernas, consentiríamos em que essas criaturas da nossa imaginação, caso não pudessem provar sua inexistência, ao menos decretassem a nossa, suprimindo-nos do rol dos existentes. Aí estaríamos na moda. Mais que socialistas, seríamos socialites.

O problema é que a crença na inexistência do comunismo é coisa ainda mais antiga do que a guerra fria. O comunismo jamais gostou de admitir que existe. Na década de 20 a OGPU (antepassada da KGB) já pagava a escritores exilados para que escrevessem livros demonstrando que o comunismo na Rússia tinha acabado. Mao Tsé-tung foi apresentado em comunicados oficiais do Kremlin como um inofensivo “socialista cristão”, Fidel Castro como um progressista democrático estilo americano. Depois de 1917, ninguém no mundo fez jamais uma revolução comunista anunciando que era uma revolução comunista. Se querem ter idéia do tremendo investimento que o comunismo tem feito, em dinheiro e esforço, para provar que não existe, leiam “New Lies for Old”, de Anatoliy Golitsyn (Atlanta, Clarion House, 1990). O autor é um ex-agente da KGB que testemunhou pessoalmente algumas dessas gigantescas operações de desinformação.

De outro lado, também é errado imaginar que o anticomunismo é coisa de museu. Arquivos históricos não são museus: são depósitos de bombas. Desde a abertura dos arquivos da KGB, o anticomunismo tornou-se o grande assunto nos círculos acadêmicos civilizados. Ela mostrou que tudo aquilo que nos anos 60 nós, jovens militantes, rejeitávamos como mentiras sórdidas do imperialismo, era pura verdade. Acreditávamos que os Rosenbergs tinham sido vítimas de um complô: os arquivos da KGB mostraram que eram mesmo espiões. Acreditávamos que os artistas demitidos de Hollywood eram inocentes perseguidos por discriminação ideológica: os documentos mostraram que cada um deles era um colaborador recrutado pela KGB. Acreditávamos que o “ouro de Moscou” era um mito criado pela CIA: hoje sabemos que bilhões de dólares saíram do Kremlin para financiar revoluções, golpes de Estado e assassinatos políticos. Acreditávamos que os planos comunistas de domínio mundial eram pura invencionice do Pentágono: hoje temos as provas de que eram uma realidade. Agora, que cartas, contracheques, ordens de serviço e memorandos estão à disposição de quem queira conferi-los nos arquivos de Moscou, já não podemos refugiar-nos sob a desculpa de sermos “inocentes úteis”. Como resumiu o historiador John Lewis Gaddis no título de um recente best seller sobre a história do anticomunismo, “We Now Know”: agora sabemos. Sabemos que, hoje, acreditar em comunistas seria inocência perversa. Sabemos? Quem “sabemos”? No Brasil ninguém sabe. Excetuando as buscas de William Waack, das quais a suposta vítima de discriminação ideológica, Olga Benário, emergiu como comprovada espiã do serviço secreto militar soviético, nenhum brasileiro quis saber nada, e o que se vem descobrindo no mundo continua excluído da nossa imprensa e das nossas livrarias, graças ao esforço de devotados vigilantes. Por isso ainda há quem diga que ser anticomunista no ano 2000 está tão fora de época quanto estava dez anos atrás. Nem mesmo em meras questões de moda é prudente acreditar nessa gente. Por isso é preciso também rejeitar com veemência a mentira de que essas excursões de militantes petistas a Cuba, das quais a mais recente levou a Havana 220 deles em companhia do sr. Luís Ignácio Lula da Silva, são meras viagens de saudosismo. A revolução continental da qual o eterno candidato se proclama eterno apaixonado não é coisa do passado. Neste mesmo momento, prisioneiros sofrem tortura e fome nos campos de concentração montados pelas FARC com o apoio de Cuba e sob os aplausos do PT, enquanto o sr. Lula pretende que acreditemos que seus contatos com o alto escalão cubano são apenas festinhas de sessentões nostálgicos. Para acreditar nisso a gente tem de estar não apenas fora do tempo: tem de estar fora de si.

Passado e futuro

Olavo de Carvalho


Época, 2 de dezembro de 2000

O primeiro está desfigurado pela falsificação histórica; o segundo, por anúncios de vingança

Em 1964, uma revolução comunista estava em marcha no Brasil, sob orientação direta do governo soviético, recebida no começo do ano por Luís Carlos Prestes em Moscou. Os arquivos da KGB confirmam isso de maneira irrespondível. A revolução foi detida por um movimento militar apoiado na maior mobilização popular de toda a nossa História (800 mil pessoas nas ruas, duas décadas antes das Diretas Já). Total de mortos na operação: dois.

Os vencidos, inconformados, buscaram apoio na ditadura cubana, que lhes deu dinheiro e treinamento para a ação armada, e desencadearam uma campanha de terror, matando a tiros e bombas vários colaboradores grandes e pequenos do novo regime e pelo menos um de seus próprios militantes, executado à simples suspeita de “fraquejar”.

O governo reagiu instalando um regime policial que, além de fazer vítimas em combate, consentiu na tortura e na morte de prisioneiros, à imitação dos terroristas que chegaram a assassinar a coronhadas um homem amarrado. No placar final, os comunistas mataram aproximadamente 200 pessoas; os militares, 300. A diferença não é tão grande que justifique tratar os primeiros como anjos, os segundos como demônios.

Em favor dos militares, resta um fato. Não há, na História do mundo, outro exemplo de revolução armada, num país de cerca de 100 milhões de habitantes, que fosse abortada com menos derramamento de sangue. Desafio qualquer pessoa a impugnar, com números e provas, essa afirmação. Em Cuba, com população dez vezes menor, a simples repressão a opositores desarmados levou à morte 17 mil dissidentes. Ditadura é ditadura, mas nivelar a brasileira e a cubana é mais que demagogia: é empulhação.

Não obstante, a violência do extinto regime repercute na mídia até hoje, em ondas cada vez mais volumosas à medida que o tempo passa, com periódicas efusões de tinta e lágrimas em louvor dos comunistas mortos, enquanto as 200 vítimas que eles mataram têm de repousar quietas e esquecidas na lata de lixo da História, o lugar reservado aos que se opõem aos desígnios da Providência revolucionária. Nos 15 anos que se seguiram ao fim da ditadura, elas jamais foram manchete, enquanto seus algozes o são pelo menos de três em três meses, sob variados pretextos, incansavelmente, sem contar filmes, programas de TV e menções chorosas nos livros didáticos.

Mas, se na imprensa qualquer referência àquelas vítimas tem sido em geral excluída das páginas noticiosas, só timidamente vazando através de colunas de opinião, cochichá-la na internet não é menos proibido. Um único e modesto site devotado a documentar os crimes cometidos pelos comunistas no Brasil, www.ternuma.com.br, tão logo apareceu foi imediatamente submetido a um bombardeio de ameaças dissuasórias, das quais cito duas por falta de espaço para mais. A primeira anuncia: “Vocês não perdem por esperar. Os novos tempos da revolução… virão à tona, fazendo com que paguem com a vida… A rebelião começará nos quartéis e os comandantes cairão diante da ira do povo”. Sublinhando a promessa de rebelião militar, a segunda assegura: “Como prova o grande camarada Lamarca, muitos militares estão a nosso lado… A Ditadura do Proletariado lhes (sic) espera!” Eis no que deu ajudar os comunistas a esconder seu passado: agora eles querem suprimir nosso futuro.

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