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O Imbecil Coletivo: O Imbecil do Pires e o meu

Olavo de Carvalho

30 de setembro de 1996

Relembrando o Pires

Pires, no caso, não é aquela concavidade, geralmente de louça ou porcelana, em que se apóia a bunda da xícara. É um ser humano, com todos os atributos aparentes da espécie, inclusive o ridículo de nascença. Apenas, ele vai, neste particular, um pouco além da média humana, provando, para gáudio dos igualitaristas, que todo mundo pode ser superior em alguma coisa.

Pelo texto que a seguir reproduzo, e diante do qual o Pires permaneceu mudo e estatelado como sói acontecer com os objetos de louça quando admoestados, o leitor poderá notar que o Pires estava particularmente qualificado para escrever, com a maior isenção, sobre a minha edição dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux, sendo por isto escolhido para essa tarefa pelo seu chefe, isto é, por ele mesmo. Sim, o Pires dirige o caderno Prosa ao Inverso, e não pode nem mesmo alegar que só escreveu porque lhe mandaram. Data venia do falecido presidente Jânio, o Pires fê-lo porque qui-lo. Fê-lo porque gosta. Fê-lo porque é o Pires, porque está condenado a sê-lo pelo resto de seus dias e porque nada se pode fazer para salvá-lo desse destino.

Que o Pires é um sujeito isento, é coisa que não nego. Só não me perguntem isento de quê, porque, se perguntarem, eu digo.

Sua resenha do meu trabalho também foi isenta — isenta de qualquer referência e esse trabalho.

Certa vez, quando o editor do caderno hoje dirigido pelo Pires era Luciano Trigo, fui convidado para escrever a resenha de um livro de João Ricardo Moderno. Respondi que, sendo o autor um notório inimigo meu, eu só faria a resenha se, lendo a obra, encontrasse nela algo que pudesse louvar. Qualquer jornalista digno do nome faria o mesmo. Mas eu sou do tempo em que a ética ainda não tinha voltado a ser tal como era antes de Sócrates, isto é, tal como a entendia o velho Alcebíades: ajudar os amigos e sacanear os inimigos.

O Imbecil do Pires e o meu

Extraído de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras
(2ª ed., Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997).

É manifesto que o crítico Paulo Roberto Pires ( Prosa & Verso, 31 de agosto ) não gostou do meu livro O Imbecil Coletivo. Tanto não gostou que inventou outro e escreveu sobre ele, jurando que era o meu. Superando além de toda medida o mero “não li e não gostei”, inaugura-se assim uma nova e mais econômica modalidade de crítica literária, que prescinde do autor, do editor e do livro, ficando todas essas funções reunidas na pessoa do crítico. Para que o leitor faça uma idéia de como se pratica o novo gênero, assinalo aqui algumas das diferenças substanciais entre o livro que escrevi e aquele que o crítico comentou:

  1. Segundo o Pires, chamo as pessoas de “medalhões”. A palavra “medalhão” só aparece duas vezes no meu livro: na citação do título “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis, e na explicação do uso que dela faz Lima Barreto. Não qualifiquei uma única pessoa com esse adjetivo.
  2. “A seus olhos – diz o Pires – , a presença de autores estrangeiros nos papersuniversitários, ensaios e suplementos culturais é sinal de subserviência intelectual.” Não afirmei nem afirmaria jamais uma asneira dessas, que o Pires mesmo inventou com a finalidade mal disfarçada de fazer-me parecer um asno.
  3. Segundo o Pires, meu livro acusa sistematicamente de “macaqueação” quem quer que cite um autor que não me agrade. Onde ele viu isso? Ao longo de todas as páginas, não acuso ninguém de macaquear qualquer autor que seja, quer me agrade ou não.
  4. Ainda segundo o Pires, insinuo que sou perseguido pela massa ignara. Nunca insinuei nem afirmei isso, muito menos no livro. O único ignaro que me persegue é o Pires.
  5. Informa o mesmo Pires que acuso os intelectuais de “conservadores”. Não encontro nada disto no meu livro, mesmo porque, no meu entender, nem “conservador” é xingamento, nem “progressista” é elogio, embora possam sê-lo para o Pires, sujeito progressista a mais não poder.
  6. Na contagem do Pires, meu livro tem 289 páginas. Nem nisto o infeliz diz a verdade: tem 383.

Por que o Pires não pode, como os críticos normais, se ater fielmente ao texto que pretende criticar? Por que tem de inventar um texto fictício para fazê-lo posar em lugar de um livro do qual não sabe sequer o número de páginas, e que provavelmente só conhece por referências de terceiros ou por uma lambida muito rapidinha no índice e no prólogo? A resposta é simples: é que ele não pretende criticar, nem mesmo impiedosamente, um texto. Quer difamar um homem, destruir-lhe o crédito e a auto-estima, feri-lo psicologicamente e criar em torno dele uma atmosfera de hostilidade maliciosa e suspicaz — propósito que só não se cumpre em razão da fraqueza do agressor e do bom estado de saúde da vítima. Prova suplementar dessa intenção, caso fosse preciso, é que o Pires não se contenta com falsificar o conteúdo da obra, mas se aventura a colar um rótulo depreciativo e falso diretamente na pessoa do autor: segundo ele, sou filósofo apenas por autodenominação. Mas não me autodenomino coisa nenhuma, nem poderá o Pires assinalar uma única página d’O Imbecil Coletivo onde eu o tenha feito. Sou assim denominado pela Academia Brasileira de Filosofia — onde acabo de ser publicamente homenageado nessa condição —, pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, pela Faculdade da Cidade, pela Universidade Católica do Salvador, por muitos intelectuais de primeira ordem e pelo mesmo jornal onde o Pires escreve mal que dói. Não podendo ignorar esse fato notório, o Pires mentiu deliberadamente, com intuito de difamação, nisto como em tudo o mais que falseou. E após ter assim procurado ferir de maneira intencional a dignidade de um sujeito que ele nunca viu e que nunca lhe fez mal algum, o Pires ainda o acusa de “grosseiro”. Certo, certo. O Pires é que é fino. Fino e de porcelana como um urinol do Império.

No seu dedicado empenho de tudo distorcer, o Pires chega a trocar o sujeito das minhas frases. Segundo ele, afirmo que meu trabalho “é mais que uma alusão satírica”. Digo isso do título, não do livro. Mas como o Pires leu do livro pouco mais que o título, compreende-se a troca.

E tal é sua ânsia de destruir, que ele não recua diante das maiores temeridades no uso de uma lógica extravagante. Ele diz que meu livro está cheinho de contradições. Mas, com inexplicável comedimento, cita uma só: é que o autor “não prescinde da mesma mídia que condena”. Conclui-se que, para o Pires, toda crítica à mídia, para ter coerência, deve abster-se de ser divulgada. O Pires, além de não saber ler, definitivamente não raciocina. Ademais, não condenei mídia nenhuma, apenas o uso que os Pires fazem dela.

O Pires, em resumo, não gostou nem leu: inventou. Sua crítica é pura fraude, que não vai enganar a ninguém. Nem sequer a ele mesmo, que já revela, no fundo, a sujidade da sua consciência. Querem ver? Segundo ele, o “formulário-padrão”, em que vacino meu livro contra os chavões da maledicência, “anula qualquer possibilidade de diálogo”. Deduz-se daí, inescapavelmente, que o Pires não concebe nenhuma outra forma de diálogo possível senão as rotulações padronizadas que o “formulário” satiriza. E ele se sente muito constrangido porque, não sabendo fazer outra coisa, já não pode mais exercer esse tipo de “diálogo” sem se autodenunciar no ato. Nunca vi tanta pressa em vestir uma carapuça.

Tão malevolente é o Pires, que, num paroxismo de raiva insana, condena no meu livro até o fato de só trazer na contracapa as críticas favoráveis. Que eu saiba, todos os livros são assim. Desejaria o Pires que o meu editor, ao contrário de todos os outros, fizesse propaganda contra o próprio produto? Ademais, não existia, até o advento do Pires, nenhuma crítica desfavorável a O Imbecil Coletivo ou a qualquer outro livro meu. Mas, para não irritar mais ainda um sujeito já tão enfurecido pelo meu pecado de fazê-lo rir de si mesmo — humilhação suprema para quem se leva infinitamente a sério —, concordo em publicar o parecer do Pires na contracapa da próxima edição. Por menos que ele goste de mim, ou eu dele, não posso negar a esse rapaz a única oportunidade que ele vai ter na vida de aparecer ao lado de Paulo Francis, Herberto Sales, Josué Montello e Bruno Tolentino.

 

A Nova Era e a Revolução Cultural: Introdução geral à Trilogia

INTRODUÇÃO GERAL À TRILOGIA

MANUAL DO USUÁRIO

de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras e dos volumes que o antecederam: A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci e O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César – Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil.

Texto lido no Lançamento de O Imbecil Coletivo. Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1996.

O Imbecil Coletivo encerra a trilogia iniciada com A Nova Era e a Revolução Cultural ( 1994 ) e prosseguida com O Jardim das Aflições ( 1995 ).

Cada um dos três livros pode ser compreendido sem os outros dois. O que não se pode é, por um só deles, captar o fundo do pensamento que orienta a trilogia inteira.

A função de O Imbecil Coletivo na coleção é bastante explícita e foi declarada no Prefácio: descrever, mediante exemplos, a extensão e a gravidade de um estado de coisas – atual e brasileiro – do qual A Nova Era dera o alarma e cuja precisa localização no conjunto da evolução das idéias no mundo fora diagnosticada em O Jardim das Aflições.

O sentido da série é, portanto, nitidamente, o de situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior da história das idéias no Ocidente, num período que vai de Epicuro até a “Nova Retórica” de Chaim Perelman. Que eu saiba, ninguém fez antes um esforço de pensar o Brasil nessa escala. Meus únicos antecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, Mário Vieira de Mello e Gilberto Freyre, o primeiro com a tetralogia iniciada com O Processo Civilizatório, o segundo com Desenvolvimento e Cultura, o terceiro com sua obra inteira. Separo-me deles, no entanto, por diferenças essenciais: Ribeiro emprega uma escala muito maior, que começa no Homem de Neanderthal, mas ao mesmo tempo procura abranger esse imenso território desde o prisma de uma determinada ciência empírica, a Antropologia, e fundado numa base filosófica decepcionantemente estreita, que é o marxismo nu e cru. Vieira de Mello, com muito mais envergadura filosófica, não se aventura a remontar além do período da Revolução Francesa, com algumas incursões até o Renascimento e a Reforma. Quanto a Gilberto, o ciclo que lhe interessa é o que se inicia com as grandes navegações. De modo geral, os estudiosos da identidade brasileira deram por pressuposto que, tendo entrado na História no período chamado “moderno”, o Brasil não tinha por que tentar enxergar-se num espelho temporal mais amplo. Estou, portanto, sozinho na jogada, e posso alegar em meu favor o temível mérito da originalidade.

Temível porque originalidade é singularidade, e a mente humana está mal equipada para perceber as singularidades como tais: ou as expele logo do círculo de atenção, para evitar o incômodo de adaptar-se a uma forma desconhecida, ou as apreende somente pelas analogias parciais e de superfície que permitem assimilá-las erroneamente a alguma classe de objetos conhecidos. Entre a rejeição silenciosa e o engano loquaz, minha trilogia não tem muitas chances de ser bem compreendida.

Mas a singularidade, nela, não está só no assunto. Está também nos postulados filosóficos que a fundamentam e na forma literária que escolhi para apresentá-la, ou antes, que sem escolha me foi imposta pela natureza do assunto e pelas circunstâncias do momento.

Quanto à forma, o leitor há de reparar que difere nos três volumes. O primeiro compõe-se de dois ensaios de tamanho médio, colocados entre duas introduções, vários apêndices, um punhado de notas de rodapé e uma conclusão. O todo dá à primeira vista a idéia de textos de origens diversas juntados pela coincidência fortuita de assunto. A um exame mais detalhado, revela a unidade da idéia subjacente, encarnada no símbolo que fiz imprimir na capa: os monstros bíblicos Behemot e Leviatã, na gravura de William Blake, o primeiro imperando pesadamente sobre o mundo, o maciço poder de sua pança firmemente apoiado sobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundo das águas, derrotado e temível no seu rancor impotente. Não usei a gravura de Blake por boniteza, mas para indicar que atribuo a esses símbolos exatamente o sentido que lhes atribuiu Blake. Detalhe importante, porque essa interpretação não é nenhuma alegoria poética, mas, como assinalou Kathleen Raine em Blake and Tradition, a aplicação rigorosa dos princípios do simbolismo cristão. Na Bíblia, Deus, exibe Behemot a Jó, dizendo: “Eis Behemot, que criei contigo” ( Jó, 40:10 ). Aproveitando a ambigüidade do original hebraico, Blake traduz o “contigo” por from thee, “de ti”, indicando a unidade de essência entre o homem e o monstro: Behemot é a um tempo um poder macrocósmico e uma força latente na alma humana. Quanto a Leviatã, Deus pergunta: “Porventura poderás puxá-lo com o anzol e atar sua língua com uma corda?” ( Jó, 40:21 ), tornando evidente que a força da revolta está na língua, ao passo que o poder de Behemot, como se diz em 40:11, reside no ventre. Maior clareza não poderia haver no contraste de um poder psíquico e de um poder material: Behemot é o peso maciço da necessidade natural, Leviatã é a infranatureza diabólica, invisível sob as águas – o mundo psíquico – que agita com a língua.

O sentido que Blake registra nessas figuras não é uma “interpretação”, na acepção negativa que Susan Sontag dá a esta palavra: é, como deve ser toda boa leitura de texto sacro, a tradução direta de um simbolismo universal. Para Blake, embora Behemot represente o conjunto das forças obedientes a Deus, e Leviatã o espírito de negação e rebelião, ambos são igualmente monstros, forças cósmicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma à outra no cenário do mundo, mas também dentro da alma humana. No entanto não é ao homem, nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. A iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviatã para fora das águas, prendendo sua língua com um anzol. Quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as forças rebeldes antinaturais, ou infranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário exterior da História. É assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bíblica, nos sugere com a força sintética de seu simbolismo uma interpretação metafísica quanto à origem das guerras, revoluções e catástrofes: elas refletem a demissão do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se da esfera da Providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino, onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, pois aí já não se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forças cegas da necessidade implacável e da rebelião impotente. No plano da História mais recente, isto é, no ciclo que começa mais ou menos na época do Iluminismo, essas duas forças assumem claramente o sentido do rígido conservadorismo e da hübris revolucionária. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda.

O drama inteiro aí descrito pode-se resumir iconograficamente no esquema em cruz que coloquei depois em O Jardim das Aflições, mas que já está subentendido em A Nova Era e a Revolução Cultural, pois constitui a estrutura mesma do enfoque analítico pelo qual procuro aí apreender a significação das duas correntes de idéias mencionadas no título: o holismo neocapitalista de Fritjof Capra e o empreendimento gramsciano de devastação cultural.

Nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmente não podia ser mais clara e foi imposta pela natureza mesma do assunto: uma introdução, um capítulo para Capra, outro para Gramsci, um retrospecto comparativo e uma conclusão inescapável: as ideologias, quaisquer que fossem, estavam sempre limitadas à dimensão horizontal do tempo e do espaço, opunham o coletivo ao coletivo, o número ao número; perdida a vertical que unia a alma individual à universalidade do espírito divino, o singular ao Singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso das proporções e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a ocupar totalitariamente o cenário inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo tempo a totalidade metafísica e a unidade do indivíduo humano, reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovisão unidimensional.

As notas e apêndices, que aparentemente colocam alguma desordem na forma do conjunto, servem aí a dois propósitos opostos e complementares: de um lado, indicar as bases mais gerais que o argumento conservava implícitas, mostrando ao leitor que a análise de Capra e Gramsci era apenas a ponta visível de uma investigação muito mais ampla que, àquela altura, só meus alunos conheciam através das aulas e apostilas do Seminário de Filosofia, mas que, nas condições de uma vida anormalmente agitada, eu não estava certo de poder redigir por completo algum dia; de outro lado, indicar que minhas análises não pairavam do céu das meras teorias, mas que se aplicavam à compreensão de fatos políticos que se desenrolavam na cena brasileira na hora mesma em que eu ia escrevendo o livro – daí as arestas polêmicas que dão a trechos desse ensaio uma aparência de jornalismo de combate. Se alguns leitores não viram no livro mais que essa superfície – como outros não verão em O Imbecil Coletivo senão a crítica de ocasião a certos figurões do dia e em O Jardim das Aflições um ataque ao establishment uspiano –, não posso dizer que perderam nada, pois o restante e o melhor do que se contém nesses livros não foi feito realmente para esses leitores e é bom mesmo que permaneça invisível aos seus olhos.

Se no primeiro volume permiti que a idéia central fosse apenas esboçada em fragmentos, um tanto à maneira minimalista, para que o leitor, antes pressentindo-a do que percebendo-a, tivesse o trabalho de ir buscá-la no fundo de si mesmo em vez de simplesmente pegá-la na superfície da página, no segundo, O Jardim das Aflições, segui a estratégia inversa: ser o mais explícito possível e dar à exposição o máximo de unidade, obrigando o leitor a seguir uma argumentação cerrada, sem saltos ou interrupções, ao longo de quatrocentas páginas. Mas, para não dar a ilusão de que essa forma completa abrangesse a totalidade do meu pensamento a respeito do tema, espalhei ao longo do texto centenas de notas de rodapé que indicavam os pressupostos teóricos implícitos, as possibilidades de aprofundamentos por realizar ( ou já realizados só oralmente em aula ), e mil e uma sementes de desenvolvimentos possíveis e interessantes, que eu realizaria se tivesse uma vida sem fim, mas que os leitores inteligentes bem podem ir realizando por sua conta. A unidade de argumentação de O Jardim das Aflições, que na minha intenção, confirmada por alguns leitores, dá a esse livro não obstante pesadíssimo e complexo a legibilidade de um romance policial, mostra assim não ser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade de um holon, como diria Arthur Koestler: algo que, visto de um lado, é um todo em si, e, de outro lado, é parte de um todo mais vasto. Esta homologia de parte e todo repete-se, por sua vez, na estrutura interna do livro, onde o evento aparentemente insignificante que lhe serve de ponto de partida já contém, na sua escala microcósmica, ou microscópica, as linhas gerais da interpretação global da história do Ocidente, que é apresentada nos capítulos restantes. Aqueles leitores que se queixaram de que um livro tão substancioso começasse pelo comentário polêmico de um acontecimento menor, mostraram não compreender bem uma das mensagens principais do livro, que é a de que, à luz de uma metafísica da História, não há propriamente acontecimentos menores – o grande e o pequeno estão coeridos na unidade orgânica de um Sentido que tudo pervade. Aquilo que nada pesa na ordem causal pode muito revelar na ordem da significação.

E, na verdade, se houvesse acontecimentos perfeitamente insignificantes, que nada merecessem senão o desprezo e o silêncio, o terceiro volume da série, O Imbecil Coletivo, não poderia sequer ter sido escrito: pois o que nele apresento é um mostruário comentado de banalidades culturais que muito significam precisamente na medida em que não valem nada. E, se decidi reuni-las num volume, dando-lhes a dignidade de serem lembradas quando seus autores já nada mais forem senão sombras no Hades, que é o sepulcro do irrelevante, foi precisamente porque entendi que, partindo de cada uma delas, e girando em círculos concêntricos cada vez mais amplos, se poderia chegar a visões de escala universal semelhantes àquela em que, partindo de uma picuinha cultural ocorrida no Museu de Arte de São Paulo em 1990, mostrei aos leitores de O Jardim das Aflições o combate de Leviatã e Behemot no horizonte inteiro da história Ocidental. E, não podendo refazer tamanho esforço hermenêutico a cada nova babaquice cultural que lesse nos jornais, decidi reunir algumas e oferecê-las aos leitores como amostras para fins de exercício. O Imbecil Coletivo é, portanto, o livro de tarefas que acompanha o texto-base trazido em O Jardim das Aflições, ficando A Nova Era como abreviatura para principiantes. Quem leia assim O Imbecil Coletivo, buscando ali as lições de casa para reconstituir, desde três dezenas de exemplos, os lineamentos da visão da História e do método interpretativo exposto nos volumes anteriores, e buscando sempre a unidade orgânica entre a parte e o todo, entre a visão filosófica de uma cultura milenar e as amostras da incultura momentânea de um país esquecido à margem da História, esse terá conquistado para si a melhor parte do que lhe dei. Pois é assim que se lêem os livros dos filósofos, mesmo quando se trate apenas de um filosofinho como este que lhes fala.

Admito que, se em qualquer dos três livros tivesse adotado uma forma expositiva mais ao gosto acadêmico, eu não precisaria estar agora chamando a atenção para uma unidade de pensamento que transpareceria à primeira vista. Mas essa visibilidade custaria a perda de todas as referências à vida autêntica e o aprisionamento do meu discurso numa redoma lingüística que não combina nem com o meu temperamento nem com a regra que me impus alguns anos atrás, de nunca falar impessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meu próprio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais respeitável que a simples honorabilidade de um animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas sempre e unicamente a indivíduos de carne e osso, despidos das identidades provisórias que o cargo, a posição social e a filiação ideológica superpõem àquela com que nasceram e com a qual hão de comparecer, um dia, ante o Trono do Altíssimo. Estou profundamente persuadido de que somente nesse nível de discurso se pode filosofar autenticamente.

Ademais, existe algum mérito pedagógico em não ser bem arrumadinho, em poder dispor os dados não na ordem mais costumeira em que os desejaria o espectador preguiçoso, mas em desarrumá-los inteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomar parte ativa na investigação. E há um prazer imenso em misturar os gêneros literários quando se é autor de um livreto que antes os distinguiu e catalogou com requintes de rigidez formal1.

Estou imensamente satisfeito de ter podido concluir esta trilogia e de poder estar aqui hoje, nesta celebração que para mim é menos a do lançamento de um livro que a da conclusão de uma parte, de uma etapa da tarefa que me cabe nesta vida. Tarefa que é, em essência, a de romper o círculo de limitações e constrangimentos que o discurso ideológico tem imposto às inteligências deste país, a de vincular a nossa cultura às correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo, a fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito da modernidade, imaginando que quatro séculos são a história inteira do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade. Tarefa que é, no seu mais elevado e ambicioso intuito, a de remover os obstáculos mentais que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma inspiração mais forte do espírito divino e possa florescer como um dom magnífico a toda a humanidade.

22/08/96

NOTAS

  1. Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos (Rio, Stella Caymmi / IAL, 1993)

Prefácio à segunda edição

 

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18 de agosto de 1996

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